sexta-feira, 29 de junho de 2007

O futuro dos Livros em questão

Impacto da internet chega ao mundo impresso e suscita ampla discussão sobre propriedade intelectual
John Lanchester
O termo 'propriedade intelectual' exerce um efeito previsível. Utilize ele em uma conversa e nove entre dez pessoas cairão imediatamente em um sono profundo. E a décima pessoa, que provavelmente está ligada de alguma maneira à indústria da criação, vai começar uma ladainha longa, articulada e autobiográfica. A história dos direitos autorais é a de indivíduos criativos se sentindo enganados e vendo nisso perdas para o interesse público.
Todos têm sua história. Esta é a minha. Entre 1941 e 1945, meus avós estiveram presos em um campo em Stanley, Hong Kong. No fim da guerra, as únicas posses de minha avó eram uma moeda de um centavo e um pequeno diário. Em suas coisas, encontrei um poema que, aparentemente, significava muito para ela. Mas você não o encontrará na edição americana de meu livro Family Romance, pois meu editor americano relutou em me deixar citá-lo. O fato de eu não ter encontrado nenhuma informação sobre o autor do poema o deixou nervoso. O texto poderia estar sob as leis de direitos autorais e, assim, não poderia ser usado. É impossível exagerar a ferocidade das leis de direitos autorais nos EUA, que são escritas pelos conglomerados de entretenimento.
O exemplo mais famoso é o Mickey Mouse - cada vez que o ratinho está para cair em domínio público, os contratos de direitos são ampliados. As corporações têm o poder e não têm medo de usá-lo. Há uma cláusula nos contratos cinematográficos que dá aos produtores direitos 'perpétuos e em todo o universo e em toda e qualquer forma de expressão existente ou a ser inventada'.
Há aqui uma ironia. Há 20 anos, os estúdios americanos anunciaram o fim da civilização como a conhecíamos por conta da 'força destrutiva' dos videocassetes. Jack Valenti, que morreu em 26 de abril aos 85 anos, ex-presidente da Motion Picture Association of America, foi ao Congresso e disse que 'a intrusão perigosa dessa nova tecnologia é para a indústria produtora americana o mesmo que o estrangulador de Boston para mulheres sozinhas na rua'. Hoje, o dinheiro ganho com a venda e aluguel de vídeos representa 46,6% de todo o lucro dos estúdios.
A indústria do entretenimento teve medo das novas tecnologias e não as entendeu. E então vieram a internet e o download de arquivos. Primeiro, adotaram a postura das ostras; depois, contra-atacaram lançando CDs protegidos contra cópia, processando os 'piratas' e basicamente fazendo tudo para que fossem odiados. Graças a essas táticas, a indústria aos poucos tem conseguido convencer as pessoas de que downloads são ilegais. O que não é o mesmo que convencê-los de que fazê-los é errado.
No Reino Unido, não chegamos ainda a esse ponto, mas vamos na mesma direção - ou iremos se continuarmos a permitir que a questão da propriedade intelectual seja determinada por interesses corporativos norte-americanos. Seria uma pena, tanto pelos danos inerentes que as restrições causam à vida criativa como também porque foi na Inglaterra que nasceu a moderna lei de propriedade. A lei dos direitos autorais surgiu no século 16 e, durante seus dois primeiros séculos de existência, era um tipo de censura. Com a criação da Stationary Company, em 1556, os editores precisavam registrar seus livros para que ficasse mais fácil para o governo censurar suas heresias e traições....
Essas leis não tinham nada a ver com as necessidades dos escritores ou do público e, sim, tudo a ver com o controle estatal. Quando a primeira lei de fato de direitos autorais surgiu, foi por acidente. As leis que controlavam as edições caíram em 1694 e, nos 16 anos seguintes, qualquer pessoa podia editar qualquer coisa. O efeito para os editores foi desastroso e eles perceberam como era importante o monopólio e, mais do que isso, como era importante criar meios de não apenas censurar as edições e definir quem possuía o quê - em resumo, a essência dos direitos autorais.
Daí surgiu o Ato de 1710, que criava um período de 21 anos após os quais os direitos seriam revertidos para os autores. E aí está: o primeiro sistema de direitos autorais da história. O ato era baseado em uma idéia: era de interesse público criar uma cultura intelectual estimulante; e a maneira de fazer isso era tornar possível a escritores ganhar dinheiro com seu trabalho.
A idéia de que os direitos autorais devem ter um componente de interesse público é central no Relatório Gowers, publicado em dezembro. Andrew Gowers editava o Financial Times. Seu relatório fala da necessidade de um 'equilíbrio' nas leis de direitos autorais, um que reconheça o interesse dos consumidores, dos criadores de propriedades intelectuais e dos conglomerados.
O conceito de direitos autorais surgiu com uma discussão sobre livros; e é no que diz respeito aos livros, seja no tocante à propriedade ou a seu suporte físico, que as mudanças agora chegam. O impacto da internet nas indústrias do cinema e da música é evidente. Agora é a vez do mundo impresso. A questão é simples: o que vai acontecer com os livros e as pessoas que os escrevem? E se foram os livros que levaram ao surgimento da idéia de direito autoral, não seria por meio deles que deveríamos tentar encontrar um novo mundo que não seja dominado apenas por interesses corporativos?
A IDÉIA É BOA...
A biblioteca Bodleian, em Oxford, é uma das maiores do mundo. Todo livro publicado no Reino Unido precisa ter uma cópia enviada a seu acervo. A coleção foi criada para acomodar a transição das cópias feitas à mão para o livro impresso. Se você tiver a sorte de ser levado para um tour pelos prédios, a conexão entre novas tecnologias e o propósito do prédio se torna ainda mais evidente - é impossível não perceber: bibliotecas são construídas para armazenar e fornecer informações. E é aí que entra o Google. A empresa se propôs a tornar os textos de todos os livros tão fáceis de acessar como um website.
A Bodleian é um dos parceiros do projeto : os outros são a biblioteca da Harvard, a Biblioteca Pública de Nova York, a Universidade de Michigan, a Biblioteca Estatal da Baviera, a Biblioteca Nacional Catalã e a Universidade de Madri. Na Bodleian, sob a supervisão de Richard Ovenden, mantenedor das coleções especiais, o Google está digitalizando tanto quanto pode da coleção de livros em domínio público.
Na prática, isso quer dizer o século 19: livros mais antigos são frágeis demais para serem manuseados e os livros do século 20 tendem ainda a estar sob efeito da lei. O Google nunca divulga seus números, mas acredita-se que o programa Book Search já conta com mais de um milhão de livros; e o número cresce. Tornar os recursos da melhor literatura disponíveis a qualquer pessoa em frente a um computador: quem poderia achar isso ruim?
Mas o aspecto controvertido do projeto do Google não está nos títulos não protegidos por direitos autorais, e sim nos ainda protegidos; e estes, surpreendentemente, são a vasta maioria dos livros - 80% de tudo que já foi publicado ainda está protegido por direitos autorais. Para estes livros, se a editora for parte do programa de parceria do Google, até 20% deles está disponível online.
O resto está apagado, mas a página contém links através dos quais é possível comprar o livro ou descobrir que biblioteca possui uma cópia. As editoras que não são parte do programa têm seus livros disponíveis para busca, mas não se pode ler nada além de um minúsculo pedaço de texto. Uma das questões das ações judiciais que entre o Google e as editoras americanas é se isso deveria ocorrer com base numa opção de inclusão (o Google só pode incluir um livro se a editora pedir) ou de exclusão (o Google pode incluir qualquer coisa a não ser que alguém peça para não ser incluído). Então: 20% de todos os livros não estão protegidos por direitos autorais e o Google pode oferecê-los com a bênção de todos; 10% estão no catálogo e as linhas de argumentação são claras. Os outros 70% dos livros estão protegidos por direitos autorais, mas fora de catálogo, ou num status sobre o qual ninguém está seguro (nem sequer se sabe quantos livros existem; dizem ser cerca de 32 milhões).
É em torno desses títulos que se desenrola a discussão entre o Google e as editoras. O Google quer disponibilizá-los online, junto de links de lugares para comprá-los. A meu ver, isto significaria que o Google seria na verdade a editora do livro - e isso causa apreensão em algumas editoras e escritores. A questão crucial é de confiança. Todos no mundo dos livros podem ver o que aconteceu com a música e está acontecendo com o cinema, e isso os preocupa; a perspectiva de cópias digitais gratuitas de livros não é uma alegria. Ovenden diz: 'Não vejo como eles venderão mais livros por não estar no Google.' Ele tem certa razão.
Há algo horripilante na idéia de que 70% de todos os livros já publicados estão no limbo, fora de catálogo. Qualquer coisa que dê a estas obras uma nova vida e novos leitores, mesmo que apenas alguns por ano, tem de ser bem-vinda. Mas, e quanto à distribuição gratuita das informações contidas nesses livros? Não seria uma maneira perigosa de encorajar os leitores a acreditar que os livros também deveriam ser de graça, de modo que, quando surgirem formas digitais de leitura (o que será inevitável), as pessoas sintam- se tão confiantes para roubar livros quanto se sentem para roubar música ou filmes? Quão seguros serão os textos eletrônicos? Os piratas não têm tido dificuldade para violar a codificação de CDs e DVDs; há alguma razão para acreditar que eles terão mais dificuldade para roubar cópias eletrônicas de livros?
Já existem websites que convidam as pessoas a baixar textos eletrônicos clicando num botão intitulado 'Roube este Livro'. E os céticos apontam para um contraste entre a atitude do Google em relação à informação de todo o restante do mundo, que a companhia quer disponibilizar de graça, e sua atitude em relação à própria informação protegida. O Google é famoso pela discrição. Esta falta de confiança compromete a atual utilidade do Google Book Search, já que os 'retalhos' de texto são curtos demais para serem úteis ou legíveis.
Uma maneira de descrever o que está acontecendo é dizer que as editoras tentam aprender com a experiência do setor da música. Havia um jeito de fazer com que a batalha pelas mentes dos fregueses acabasse de outro modo? Era inevitável que o compartilhamento de arquivos se tornasse endêmico? A indústria fonográfica poderia ter convencido as pessoas de que o compartilhamento de arquivos era uma forma de roubo? O que as editoras devem fazer para evitar que algo similar aconteça com elas?
MAIS DO QUE CONTÉUDO
Há pessoas que prevêem um desastre para as editoras e escritores. Pessoalmente, acredito que os livros vão ficar bem, por uma razão principal: os livros não são apenas a informação que contêm. Um livro também é um objeto, uma peça de tecnologia extraordinariamente eficaz, portátil, durável, cara para piratear mas fácil de usar, não sujeita a perder todos os seus dados em panes e capaz de assumir uma variedade impressionante de belas formas.
O Google Book Search será uma ferramenta magnífica para o acesso à informação em livros; no entanto, mesmo que pudéssemos criar um MP3 de Moby Dick, por que diabos preferiríamos isto a uma cópia encadernada?
Creio que a discussão entre o Google e as editoras será resolvida pelas provas. O Google é rápido para exibir exemplos de como o Book Search tem ajudado pequenas editoras; se as provas se acumularem a ponto de serem irrefutáveis, terão seu efeito. Do mesmo modo, se houver provas de que um conteúdo excessivo dos livros está sendo distribuído e os livros estão começando a entrar na categoria mental de um produto pelo qual as pessoas não esperam pagar, as editoras vão se retirar do programa de parceria.
Quanto à propriedade intelectual em geral, tenho duas sugestões, ambas derivadas de minhas próprias experiências no mundo dos livros. Uma é que o período de controle de direitos autorais não precisa ser igual ao período no qual um artista pode ganhar royalties.
Trabalhei por um curto período na Penguin no início dos anos 90, quando Joyce e Woolf deixaram brevemente de ser protegidos por direitos autorais e as vendas de sua obra dispararam, pois editoras lançaram edições rivais - no caso do livro para o qual a Penguin já possuía uma licença, Ulisses, as vendas aumentaram (e havia outras cinco edições no mercado).
Por ter testemunhado isso em primeira mão, acredito que, 50 anos depois da morte de um autor, qualquer pessoa deveria ter permissão para publicar um livro, gravar uma obra musical ou encenar uma peça, contanto que pagasse direitos. Isto aumentaria o nível geral de criatividade cultural e ainda permitiria a renda, mas não o controle, dos descendentes dos artistas.
A outra sugestão é que os artistas deveriam ter assegurada, por lei, uma porcentagem dos lucros com a venda de sua obra. No momento, os grandes varejistas espremem as editoras, que por sua vez espremem o talento, a tal ponto que é comum apenas 5% do preço de compra de um livro (embora não se trate apenas de livros) chegarem ao escritor. Ou seja, 95% do dinheiro fica com alguém que não o criador. Parece justo?
Minhas conversas sugerem que a maioria das pessoas não tem consciência de que promoções de 'leve três, pague dois' e preços bem reduzidos significam que o escritor vai ganhar menos. Não poderíamos garantir que 10% do preço pago por um livro fosse para o escritor? Isso poderia criar alguma pressão de alta dos preços - ou não. Poderia apenas significar que as margens dos supermercados arcariam com parte da pressão.
De fato, uma lei desse tipo poderia se tornar um modelo para outras áreas, não só de propriedade intelectual, mas também de trabalho. Se a idéia vingasse, poderíamos ver um mundo no qual agricultores ou operários recebessem, por lei, uma fatia mínima dos lucros resultantes de seu trabalho. Uma lei como essa poderia ser uma nova estrutura tão importante e benéfica quanto a lei de direitos autorais de 1710. Hoje, como há três séculos, uma cultura criativa é aquela na qual a criatividade tem uma chance de ser recompensada.
Dada a pressão exercida por processos tecnológicos e econômicos, é bem possível que esta seja a última chance de a idéia do bem público derrotar os interesses corporativos que querem escrever as leis de propriedade intelectual sozinhos, em benefício próprio. É melhor aproveitá-la ao máximo.
Livros na rede GOOGLE: O projeto do site de buscas pode ser acessado pelo endereço ; nele, você digita o livro procurado e é direcionado para ele ou para bibliotecas virtuais em que ele pode ser encontrado. CLÁSSICOS: Marcos da literatura brasileira e mundial estão nos sites como o E-BookCult ( site ), Domínio Público ( site ) e Virtual Books (virtualbooks.terra.com.br). PROJETO GUTENBERG: Entre os sites estrangeiros, destaque para o do Projeto Gutenberg ( site ), que reúne cerca de 17 mil livros e tem dois milhões de downloads por mês. UNIVERSIDADES: Instituições de ensino cada vez mais disponibilizam conteúdo na rede. A Universidade de São Paulo, por exemplo, oferece as teses defendidas por alunos ( site ) e livros (www. bibvirt.futuro.usp.br).

Um comentário:

  1. Rita, excelente post sobre direitos autorais. Descobri teu blog hoje ao fazer uma pesquisa sobre as publicações do Senado. Também sou advogada aqui no RS e participo de um grupo de estudos sobre a cultura indígena. Abraço
    Nara

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