O "ser traído" e o "trair" produzem máculas diferentes nas honras masculinas e femininas, respectivamente. É o que mostra a pesquisa de Francisca Luciana de Aquino, mestre em Antropologia pela UFPE, cujo título chama atenção pela pretensa informalidade: Homens "cornos", mulheres "gaieiras": infidelidade conjugal, honra, humor, e fofoca num bairro popular do Recife-PE. A pesquisa se alimenta do caráter jocoso da traição para analisar a maneira como a infidelidade conjugal feminina desconstroi os ideais de honra masculina e feminina socialmente aceita, através da criação de estigmas e da depreciação social. Francisca Luciana de Aquino foi recentemente agraciada com uma menção honrosa na categoria Graduado no Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero do CNPq.
No casamento, é a mulher que faz o casal respeitável ou ridículo. A citação é de Eugène Scribe, dramaturgo francês, e encontra respaldo nos moradores de Nova Guanabara – nome ficcional dado pela pesquisadora ao bairro em que se hospedou durante os meses de trabalho de campo, e em cima do qual desenvolveu sua dissertação. Ao contrário dos casos em que é o homem quem pratica a infidelidade, de um modo geral já naturalizada e legitimada pela sociedade, segundo Luciana Aquino, a traição exercida pela mulher gera comicidade pela subversão dos papéis atribuídos socialmente ao casal.
Do lado do traído, o homem tem sua masculinidade seriamente atingida. “O não controle da mulher causa a desonra social do homem de modo que ele passa a vivenciar momentos de humilhação, desprestígio social e o estigma de ‘corno’. Nessa condição social inferior, o homem que deveria manifestar-se viril, forte e destemido manifesta sua vulnerabilidade masculina”, afirma a pesquisadora. O trabalho passeia pelos valores que alicerçam a honra masculina. Nesse sentido, “os chifres”, ou “cornos”, quando aplicados ao homem, constituem desonrosas insígnias, tornando o traído uma figura risível.
A mulher, por sua vez, vivencia um estigma diferente, porém não menos implacável. De acordo com a antropóloga, a infidelidade assume conotações bem distintas de acordo com valores atribuídos a sua condição de gênero. Essa distinção é facilmente comprovada pela alcunha de “gaieira” conferida à esposa infiel. “Esse modelo tradicional de esposa fiel, mãe e dona do lar ainda é uma referência de comportamento feminino e para o modo como as mulheres são concebidas socialmente”, coloca. E acrescenta: “O modelo de fidelidade ao parceiro é tão influente e decisivo que ela passa a conviver com o estigma de ‘gaieira’ no interior do bairro.” Em outras palavras, se a contestação da masculinidade dos homens ou sua própria desonra social passam pela incapacidade de controlar a mulher, a honra feminina está condicionada ao exercício de suas funções domésticas e ao cumprimento do papel de esposa “fiel”.
SILÊNCIO - Diante da situação, muitos homens preferem silenciar sobre a infidelidade da esposa, numa tentativa de evitar a humilhação. No outro extremo, os casos de agressão à mulher são comuns entre os esposos traídos. “Até recentemente, vigorava e ainda perdura de modo simbólico e de outras maneiras a tese da ‘legítima defesa de honra’, usada por homens para justificar os homicídios contra as esposas e/ou companheiras infiéis ou contra os supostos amantes”, argumenta Luciana Aquino. Os que aceitam sua condição de “corno” utilizam e ressignificam o humor para lidar com o estigma de modo que passam a brincar com sua própria masculinidade, tornando menos árdua sua condição de estigmatizado.
Corrobora com essa opinião o professor Luis Felipe Rios do Nascimento, do Departamento de Psicologia, que foi orientador do trabalho. “Uma questão fundamental que ela aponta é que nem toda (des)honra masculina é ‘restituída’ via violência. O humor é ferramenta importante para muitos homens lidarem com este ‘infortúnio’”, afirma. O orientador também comenta o novo olhar que o trabalho traz para os estudos de gênero. “A novidade está em deslocar-se da ideia de que os homens estão para a honra assim como as mulheres estão para a vergonha - o lugar comum de muitos estudos mais clássicos”, destaca.
VIZINHANÇA – Durante a pesquisa de campo, a antropóloga residiu no bairro pesquisado, o que a possibilitou tecer um panorama espacial e social da localidade, além de colaborar na compreensão das relações conjugais locais. Como uma peculiaridade de bairros populares, a paisagem urbana é caracterizada pela proximidade entre as casas, por ruas estreitas, pela presença de becos que, de acordo com a pesquisadora, desenham o modo como as pessoas vivem. “Pude acompanhar então como se formavam as redes de parentesco e entender a dinâmica das relações de vizinhança que se baseavam, sobretudo, em relações de trocas e ainda em fofocas. A irrisória distância entre uma casa e outra, apenas separada por um beco bastante estreito, revela não apenas a caracterização espacial e urbana do bairro, mas, sobretudo, a organização da vida social”, afirma.
Estudar um fenômeno social utilizando-se da fofoca como principal fonte de pesquisa antropológica não é a metodologia mais ortodoxa. De acordo com a autora, porém, o que interessa não é saber se a informação veiculada é verídica ou falsa, mas compreender, sobretudo, como se formam as redes de fofoca e sua dinâmica. “A fofoca é um fenômeno complicado de se estudar. O/a antropólogo/a jamais estudaria a fofoca ou qualquer outro fenômeno social e/ou cultural num ambiente laboratorial no qual pudesse controlar as variáveis da pesquisa. Para se estudar o universo da fofoca, é imprescindível entender como essas redes se constituem, acompanhar os mexericos da vida cotidiana e observar os pormenores das conversas”, completa.
Para ratificar a importância das redes de fofoca na vida social, Luciana Aquino cita os sociólogos Norbert Elias e John Scotson, segundo os quais “se um dia parassem os moinhos da boataria na aldeia, a vida perderia muito de seu tempero.”
Mais informações
Departamento de Psicologia
Professor Luis Felipe Rios do Nascimento
(81) 2126.8730
fipo@bol.com.br
No casamento, é a mulher que faz o casal respeitável ou ridículo. A citação é de Eugène Scribe, dramaturgo francês, e encontra respaldo nos moradores de Nova Guanabara – nome ficcional dado pela pesquisadora ao bairro em que se hospedou durante os meses de trabalho de campo, e em cima do qual desenvolveu sua dissertação. Ao contrário dos casos em que é o homem quem pratica a infidelidade, de um modo geral já naturalizada e legitimada pela sociedade, segundo Luciana Aquino, a traição exercida pela mulher gera comicidade pela subversão dos papéis atribuídos socialmente ao casal.
Do lado do traído, o homem tem sua masculinidade seriamente atingida. “O não controle da mulher causa a desonra social do homem de modo que ele passa a vivenciar momentos de humilhação, desprestígio social e o estigma de ‘corno’. Nessa condição social inferior, o homem que deveria manifestar-se viril, forte e destemido manifesta sua vulnerabilidade masculina”, afirma a pesquisadora. O trabalho passeia pelos valores que alicerçam a honra masculina. Nesse sentido, “os chifres”, ou “cornos”, quando aplicados ao homem, constituem desonrosas insígnias, tornando o traído uma figura risível.
A mulher, por sua vez, vivencia um estigma diferente, porém não menos implacável. De acordo com a antropóloga, a infidelidade assume conotações bem distintas de acordo com valores atribuídos a sua condição de gênero. Essa distinção é facilmente comprovada pela alcunha de “gaieira” conferida à esposa infiel. “Esse modelo tradicional de esposa fiel, mãe e dona do lar ainda é uma referência de comportamento feminino e para o modo como as mulheres são concebidas socialmente”, coloca. E acrescenta: “O modelo de fidelidade ao parceiro é tão influente e decisivo que ela passa a conviver com o estigma de ‘gaieira’ no interior do bairro.” Em outras palavras, se a contestação da masculinidade dos homens ou sua própria desonra social passam pela incapacidade de controlar a mulher, a honra feminina está condicionada ao exercício de suas funções domésticas e ao cumprimento do papel de esposa “fiel”.
SILÊNCIO - Diante da situação, muitos homens preferem silenciar sobre a infidelidade da esposa, numa tentativa de evitar a humilhação. No outro extremo, os casos de agressão à mulher são comuns entre os esposos traídos. “Até recentemente, vigorava e ainda perdura de modo simbólico e de outras maneiras a tese da ‘legítima defesa de honra’, usada por homens para justificar os homicídios contra as esposas e/ou companheiras infiéis ou contra os supostos amantes”, argumenta Luciana Aquino. Os que aceitam sua condição de “corno” utilizam e ressignificam o humor para lidar com o estigma de modo que passam a brincar com sua própria masculinidade, tornando menos árdua sua condição de estigmatizado.
Corrobora com essa opinião o professor Luis Felipe Rios do Nascimento, do Departamento de Psicologia, que foi orientador do trabalho. “Uma questão fundamental que ela aponta é que nem toda (des)honra masculina é ‘restituída’ via violência. O humor é ferramenta importante para muitos homens lidarem com este ‘infortúnio’”, afirma. O orientador também comenta o novo olhar que o trabalho traz para os estudos de gênero. “A novidade está em deslocar-se da ideia de que os homens estão para a honra assim como as mulheres estão para a vergonha - o lugar comum de muitos estudos mais clássicos”, destaca.
VIZINHANÇA – Durante a pesquisa de campo, a antropóloga residiu no bairro pesquisado, o que a possibilitou tecer um panorama espacial e social da localidade, além de colaborar na compreensão das relações conjugais locais. Como uma peculiaridade de bairros populares, a paisagem urbana é caracterizada pela proximidade entre as casas, por ruas estreitas, pela presença de becos que, de acordo com a pesquisadora, desenham o modo como as pessoas vivem. “Pude acompanhar então como se formavam as redes de parentesco e entender a dinâmica das relações de vizinhança que se baseavam, sobretudo, em relações de trocas e ainda em fofocas. A irrisória distância entre uma casa e outra, apenas separada por um beco bastante estreito, revela não apenas a caracterização espacial e urbana do bairro, mas, sobretudo, a organização da vida social”, afirma.
Estudar um fenômeno social utilizando-se da fofoca como principal fonte de pesquisa antropológica não é a metodologia mais ortodoxa. De acordo com a autora, porém, o que interessa não é saber se a informação veiculada é verídica ou falsa, mas compreender, sobretudo, como se formam as redes de fofoca e sua dinâmica. “A fofoca é um fenômeno complicado de se estudar. O/a antropólogo/a jamais estudaria a fofoca ou qualquer outro fenômeno social e/ou cultural num ambiente laboratorial no qual pudesse controlar as variáveis da pesquisa. Para se estudar o universo da fofoca, é imprescindível entender como essas redes se constituem, acompanhar os mexericos da vida cotidiana e observar os pormenores das conversas”, completa.
Para ratificar a importância das redes de fofoca na vida social, Luciana Aquino cita os sociólogos Norbert Elias e John Scotson, segundo os quais “se um dia parassem os moinhos da boataria na aldeia, a vida perderia muito de seu tempero.”
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fipo@bol.com.br
Fonte: Luiz Felipe Campos, da Ascom/UFPE
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