A visão dos relacionamentos homossexuais pelos tribunais de justiça nos últimos anos sofreu mudanças consideráveis. Foi através da observação de transformações como essas, tema da pesquisa do mestrando Henrique Carneiro, que os pesquisadores do Mostruário de Observação e Investigação da Decisão Jurídica (MoinH.O) confirmaram a ideia de que o Direito tem acompanhado as mudanças da sociedade. Dessa forma, a noção de que o Direito vive em construção é o ponto central das pesquisas desenvolvidas pelo grupo, coordenado pelo professor Artur Stamford da Silva, do Centro de Ciências Jurídicas da UFPE.
O projeto, intitulado “A sociologia da decisão jurídica: A produção de sentido no direito”, pesquisa a tomada de decisão jurídica, com base na íntegra de textos judiciais. Tais documentos foram analisados a partir da Teoria dos Sistemas de Sentido do sociólogo Niklas Luhmann e da concepção de Interdiscursividade do lingüista Mikhail Bakhtin e Julia Kristeva.
Os pesquisadores mostram que duas vertentes muito fortes no Direito estão incorretas. A primeira, mais fraca atualmente, considera que o Direito já está determinado na lei e que sua interpretação é automática. A segunda, por sua vez, diz que o juiz age de acordo com a própria vontade e usa a legislação apenas para legitimar as decisões tomadas, o que indica uma grande arbitrariedade. No entanto, as observações de Stamford e seus orientandos apontam para uma terceira explicação: a tomada de decisões resultaria, na realidade, de uma série de processos comunicativos.
Os dados empíricos foram coletados através de pesquisa documental no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, bem como nos websites do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). A partir daí, os pesquisadores observaram a relação entre os discursos constantes nos autos do processo judicial (petições, provas e testemunhos), os textos legislativos e a decisão do juiz e do tribunal.
A partir dessas observações, o grupo constatou que, em casos de mudanças sociais, os discursos no início de um julgamento costumam defender um posicionamento tradicional, mas posteriormente se desenvolvem argumentos de cunho social (tais como “essa é uma questão de justiça” ou “o mundo mudou, a justiça também precisa mudar”) que vão alterando aquela decisão e, com o tempo, tais mudanças chegam aos Tribunais Superiores como o STJ e o STF. O foco das observações, então, é identificar como essas mudanças afetam e influenciam a tomada de decisão jurídica.
Um dos exemplos que ilustram essas mudanças é o caso da pesquisa de Henrique Carneiro sobre a visão da homoafetividade nos tribunais. Carneiro explica que, quando começou a se tornar mais frequente no Brasil a discussão sobre os relacionamentos homossexuais, poucos acreditavam que a união entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por parte de um casal homoafetivo chegariam a ser judicialmente permitidas. No entanto, desde a Constituição de 1988 houve uma transformação nas decisões envolvendo a homoafetividade nas decisões do Tribunal Superior de Justiça, principalmente no que se refere ao reconhecimento da união homoafetiva. Consequentemente, hoje já existe uma visão mais “aberta” a esse respeito no mundo jurídico, em maior consonância com o entorno social e as mudanças de pontos de vista da sociedade.
CONSTRUTIVISMO – Percebendo que o Direito, como sistema da sociedade, se molda às mudanças sociais, as observações dos pesquisadores demonstram seu construtivismo, mesmo que em um processo lento. Identificam não apenas casos em que estão presentes, no Judiciário, discursos ideológicos de manutenção do poder, mas também situações nas quais o Direito funciona como promotor de mudança social. A partir daí, chegaram à flexibilização da “coisa julgada”, que, de acordo com Stamford, era considerado um dos princípios intocáveis do direito moderno. Tal princípio determina que, depois da decisão dos tribunais e quando não cabe mais nenhum recurso, a questão não pode mais ser discutida; no entanto, hoje há casos em que é admissível rever as decisões, o que ampliou o espaço para discussão e mudança.
A pesquisa demonstra que a concepção de decisão jurídica como uso exclusivo da legislação está ultrapassada. “Hoje se vê que essa decisão pode influenciar, de forma positiva ou negativa, políticas públicas”, afirma Artur Stamford. O professor e seus orientandos concluíram, por exemplo, que as políticas públicas de saúde não são geridas exclusivamente pelo Legislativo e Executivo. Um exemplo da interferência do Judiciário está exposto na pesquisa de Rodolfo Lopes, um dos orientandos da graduação. O objeto de estudo de Lopes, que desenvolve a pesquisa no Pibic-UFPE, é o uso do argumento de “direito à saúde” nos pleitos judiciais para concessão de medicamentos não oferecidos pelo governo. A observação desses processos mostra que o Judiciário interfere quando toma decisões obrigando o Estado e o município a conceder medicamentos para determinadas pessoas, o que o evidencia como ser ativo da sociedade.
ESCALOGRAMAS – Para análise do léxico usado pelos tribunais, um dos recursos utilizados pelos pesquisadores foi a montagem de escalogramas. Esse tipo de gráfico mostra a frequência das palavras usadas nos processos. As palavras que aparecem com muita frequência juntas no documento têm uma tendência a ficarem próximas no gráfico e, assim, torna-se possível uma melhor visualização de como são construídos os argumentos.
No caso da pesquisa da mestranda Suenya Almeida, por exemplo, que avaliou os discursos que geraram a mudança do sentido de paternidade, foram localizadas e incluídas no escalograma palavras como ciência, evolução, justiça, dignidade e verdade. Stamford explica que as observações mostraram que palavras como essas estão muito presentes nos discursos no Direito atualmente, provavelmente relacionadas à visão de mundo de quem toma as decisões, apesar de estes argumentos não estarem na legislação nem na teoria do Direito. O grupo verificou, enfim, que esses elementos têm cada vez mais força argumentativa nos processos judiciais.
A exploração dessas informações pode trazer esclarecimentos sobre como funcionam os processos de tomada de decisões no Direito. Para isso, as pesquisas partem da teoria dos sistemas de sentido enfatizando a perspectiva comunicativa, construtivista e sociológica, como ressalta Stamford. A partir da consciência desses processos, seria possível, por parte dos profissionais do Direito, trabalharem com outra visão da área, em uma perspectiva menos determinada por dicotomias. Além disso, o projeto pode vir a ter a aplicação prática de ajudar advogados a não só entender as tendências de um tribunal, mas também escrutinar essas tendências e observar o que as gerou, ampliando a possibilidade de o direito estatal acompanhar mais de perto a vida em sociedade.
Na pesquisa, iniciada em 2005, estão envolvidos oito alunos da graduação e da pós-graduação em Direito. Artur Stamford da Silva apresentará em julho, no congresso a ser realizado em comemoração aos 20 anos do Instituto Nacional de Sociologia Jurídica de Oñati, na Espanha, um resumo da teoria empregada. Os orientandos, por sua vez, utilizam os pressupostos teóricos explorados pelo grupo para investigar áreas do seu interesse, de forma mais específica.
Mais informações
Professor Artur Stamford da Silva
artur.silva@ufpe.br
artur@stamford.pro.br
Fonte: Luísa Ferreira, da Ascom/UFPE
O projeto, intitulado “A sociologia da decisão jurídica: A produção de sentido no direito”, pesquisa a tomada de decisão jurídica, com base na íntegra de textos judiciais. Tais documentos foram analisados a partir da Teoria dos Sistemas de Sentido do sociólogo Niklas Luhmann e da concepção de Interdiscursividade do lingüista Mikhail Bakhtin e Julia Kristeva.
Os pesquisadores mostram que duas vertentes muito fortes no Direito estão incorretas. A primeira, mais fraca atualmente, considera que o Direito já está determinado na lei e que sua interpretação é automática. A segunda, por sua vez, diz que o juiz age de acordo com a própria vontade e usa a legislação apenas para legitimar as decisões tomadas, o que indica uma grande arbitrariedade. No entanto, as observações de Stamford e seus orientandos apontam para uma terceira explicação: a tomada de decisões resultaria, na realidade, de uma série de processos comunicativos.
Os dados empíricos foram coletados através de pesquisa documental no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, bem como nos websites do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). A partir daí, os pesquisadores observaram a relação entre os discursos constantes nos autos do processo judicial (petições, provas e testemunhos), os textos legislativos e a decisão do juiz e do tribunal.
A partir dessas observações, o grupo constatou que, em casos de mudanças sociais, os discursos no início de um julgamento costumam defender um posicionamento tradicional, mas posteriormente se desenvolvem argumentos de cunho social (tais como “essa é uma questão de justiça” ou “o mundo mudou, a justiça também precisa mudar”) que vão alterando aquela decisão e, com o tempo, tais mudanças chegam aos Tribunais Superiores como o STJ e o STF. O foco das observações, então, é identificar como essas mudanças afetam e influenciam a tomada de decisão jurídica.
Um dos exemplos que ilustram essas mudanças é o caso da pesquisa de Henrique Carneiro sobre a visão da homoafetividade nos tribunais. Carneiro explica que, quando começou a se tornar mais frequente no Brasil a discussão sobre os relacionamentos homossexuais, poucos acreditavam que a união entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por parte de um casal homoafetivo chegariam a ser judicialmente permitidas. No entanto, desde a Constituição de 1988 houve uma transformação nas decisões envolvendo a homoafetividade nas decisões do Tribunal Superior de Justiça, principalmente no que se refere ao reconhecimento da união homoafetiva. Consequentemente, hoje já existe uma visão mais “aberta” a esse respeito no mundo jurídico, em maior consonância com o entorno social e as mudanças de pontos de vista da sociedade.
CONSTRUTIVISMO – Percebendo que o Direito, como sistema da sociedade, se molda às mudanças sociais, as observações dos pesquisadores demonstram seu construtivismo, mesmo que em um processo lento. Identificam não apenas casos em que estão presentes, no Judiciário, discursos ideológicos de manutenção do poder, mas também situações nas quais o Direito funciona como promotor de mudança social. A partir daí, chegaram à flexibilização da “coisa julgada”, que, de acordo com Stamford, era considerado um dos princípios intocáveis do direito moderno. Tal princípio determina que, depois da decisão dos tribunais e quando não cabe mais nenhum recurso, a questão não pode mais ser discutida; no entanto, hoje há casos em que é admissível rever as decisões, o que ampliou o espaço para discussão e mudança.
A pesquisa demonstra que a concepção de decisão jurídica como uso exclusivo da legislação está ultrapassada. “Hoje se vê que essa decisão pode influenciar, de forma positiva ou negativa, políticas públicas”, afirma Artur Stamford. O professor e seus orientandos concluíram, por exemplo, que as políticas públicas de saúde não são geridas exclusivamente pelo Legislativo e Executivo. Um exemplo da interferência do Judiciário está exposto na pesquisa de Rodolfo Lopes, um dos orientandos da graduação. O objeto de estudo de Lopes, que desenvolve a pesquisa no Pibic-UFPE, é o uso do argumento de “direito à saúde” nos pleitos judiciais para concessão de medicamentos não oferecidos pelo governo. A observação desses processos mostra que o Judiciário interfere quando toma decisões obrigando o Estado e o município a conceder medicamentos para determinadas pessoas, o que o evidencia como ser ativo da sociedade.
ESCALOGRAMAS – Para análise do léxico usado pelos tribunais, um dos recursos utilizados pelos pesquisadores foi a montagem de escalogramas. Esse tipo de gráfico mostra a frequência das palavras usadas nos processos. As palavras que aparecem com muita frequência juntas no documento têm uma tendência a ficarem próximas no gráfico e, assim, torna-se possível uma melhor visualização de como são construídos os argumentos.
No caso da pesquisa da mestranda Suenya Almeida, por exemplo, que avaliou os discursos que geraram a mudança do sentido de paternidade, foram localizadas e incluídas no escalograma palavras como ciência, evolução, justiça, dignidade e verdade. Stamford explica que as observações mostraram que palavras como essas estão muito presentes nos discursos no Direito atualmente, provavelmente relacionadas à visão de mundo de quem toma as decisões, apesar de estes argumentos não estarem na legislação nem na teoria do Direito. O grupo verificou, enfim, que esses elementos têm cada vez mais força argumentativa nos processos judiciais.
A exploração dessas informações pode trazer esclarecimentos sobre como funcionam os processos de tomada de decisões no Direito. Para isso, as pesquisas partem da teoria dos sistemas de sentido enfatizando a perspectiva comunicativa, construtivista e sociológica, como ressalta Stamford. A partir da consciência desses processos, seria possível, por parte dos profissionais do Direito, trabalharem com outra visão da área, em uma perspectiva menos determinada por dicotomias. Além disso, o projeto pode vir a ter a aplicação prática de ajudar advogados a não só entender as tendências de um tribunal, mas também escrutinar essas tendências e observar o que as gerou, ampliando a possibilidade de o direito estatal acompanhar mais de perto a vida em sociedade.
Na pesquisa, iniciada em 2005, estão envolvidos oito alunos da graduação e da pós-graduação em Direito. Artur Stamford da Silva apresentará em julho, no congresso a ser realizado em comemoração aos 20 anos do Instituto Nacional de Sociologia Jurídica de Oñati, na Espanha, um resumo da teoria empregada. Os orientandos, por sua vez, utilizam os pressupostos teóricos explorados pelo grupo para investigar áreas do seu interesse, de forma mais específica.
Mais informações
Professor Artur Stamford da Silva
artur.silva@ufpe.br
artur@stamford.pro.br
Fonte: Luísa Ferreira, da Ascom/UFPE
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