Um Direito que Respeite!

Mestre Verdelinho e sua esposa no show do lançamento de seu primeiro cd.
Segundo o Mestre, "o maior amor de sua vida, conquistado com o pandeiro".

Entrevista

NAS ASAS DO VERDELINHO

Mestre fala de sua carreira e das dificuldades

do artista em sobreviver da cultura popular

Aos três anos de idade, já era tido como uma promessa pela vizinhança. Aos oito, fugiu de casa para acompanhar dois cantadores. Aos dez, ganhou o nome de Verdelinho, em alusão a um pequeno pássaro (também conhecido por saí-azul — Dacnis cayana). Com esse apelido, Mário Francisco de Assis marcou seu nome na história da cultura popular alagoana.

Tocou, cantou e dançou para sobreviver. Entrou para o guerreiro e virou mestre "bem dizer a pulso". Viajou pelo Brasil. Exibiu sua arte, divulgou nossas raízes. Fez "pra mais de trezentas" músicas e influenciou artistas, como Jurandir Bozo, do Poeira Nordestina. Deu ao nome Verdelinho (ou verdilinho, com i) asas maiores, vôos mais longos e cantos melhores (uma parte registrada recentemente em seu primeiro CD). Uma trajetória realmente admirável.

No entanto, a riqueza artística do Mestre não acompanhou sua vida material. O menino pobre nascido em Coqueiro Seco continua pobre. Pobre, esquecido e negligenciado pelo poder público. Vítima recente de um AVC (acidente vascular cerebral), Verdelinho diz que não recebeu nenhuma ajuda da Secretaria de Cultura. "Nem assistência, nem piroca nenhuma".

Mesmo assim, ainda convalescente, Mestre Verdelinho achou forças e nos recebeu em sua casa, no bairro de Bebedouro, para quase duas horas de entrevista. Ao lado da família, falando com dificuldades, ele contou um pouco de sua vida e das dificuldades do artista em sobreviver da arte popular.

Com quantos anos o senhor começou a tocar pandeiro?

Mestre Verdelinho - Eu comecei a tocar com 3 anos de idade. Eu via meu pai cantando, e me dava a maior vontade de cantar. Mas meu primeiro pandeiro eu fiz em casa mesmo. Eu brincando detrás de casa, eu fazia com latas velhas, de doce ou daquelas latas maiores que eu nem sabia do que era. O senhor já cantava ou apenas tocava?Mestre Verdelinho - Onde eu morava tinha um guerreiro, um mateus velho, que eu tinha até medo dele. Ele bem moreno, todo melado de carvão fazendo muito deslocamento, fazendo aquelas lamúrias. Eu como criança ficava com medo. Aí eu ficava cantando [cantando]

Ai, Maria, eu sou teu amor

A aí, Maria, eu sou teu amor

Maria foi embora

Lembrança me deixou

Maria foi embora

Lembrança me deixou.

Na terra sobe o calor

Estira, estica e encolhe

O gato só se conhece

Por ter as unhas veloz

Quem lhe ensinou essa música?

Mestre Verdelinho - Eu ouvia ele cantar e decorei. Eu segurei essa musiquinha lá pela vizinhança, e a vizinhança achou muito interessante, como se eu fosse uma curiosidade, uma coisa... eu não sei explicar bem ... uma coisa simples, mas uma simplicidade que tivesse futuro para mim...

Aos oito anos de idade o senhor fugiu de casa, por quê?

Mestre Verdelinho -Carinho eu não tinha de ninguém. Era eu quem dava carinho aos que tinha dentro de casa. Eu era o mais velho, e eles [os cantadores] eram quem me davam o carinho, que eram grandes Fugir de casa porque, quando eles saíram, ficou aquilo tão vazio, aquela falta enorme pelos nomes deles: um se chamava Benedito, e o outro, Curió.

E quem era Benedito e Curió?

Mestre Verdelinho - Dois cantadores que passaram uns tempos na casa de meu pai. Às vezes, eu tocava primeiro do que eles. O Curió sempre mais gostava de cantar comigo do que com o Benedito. Porque, realmente, para o Curió era melhor, porque, ele cantando comigo, ele já ia ganhando aplauso do povo. Eu novinho, ele camarada velho, e o pessoal ficava admirando o meu tamanho.

E quanto tempo o senhor passou com esses cantadores depois que fugiu de casa?

Mestre Verdelinho - Nove meses. Andando em São Miguel [dos Campos], pelos arrebaldes... fazendo uns serviçozinhos que precisavam por ali. Quando foi um tempo, eles se engajaram de ir para a Bahia de São Salvador, e eu fui com eles.
E como foi a viagem?Mestre Verdelinho - Nós andando, muito, muito, muito... pelo dia. Carregava uma cabaça cheia d’água... Andava com feijão, farinha e charque. Era o dia todinho de pé, o sol batendo no corpo, e pedra, na sola do pé... Botava fundo em bacia, engraxava sapato... Às vezes, ganhando pelo um precinho; às vezes, pela bóia.

Mas vocês também tocavam onde chegavam?

Mestre Verdelinho - De noite. De noite, nós “tocava”. Em cada cidade, em cada povoado. A gente dormia nas casas que cantava ou no meio do mato, no chão... nem rede a gente tinha... Um dia, no meio do caminho, já de tardizinha, eu disse: “olha rapaz, nós tá nesse deserto, nós vamos dormir aonde?” Aí o Curió disse: “Na casa de Nosso Senhor Jesus Cristo! Vamos embora”.

Andemos, andemos, andemos... e quando foi umas horas, nós paremos. Paremos, olhemos assim tudo escuro. O lugar era plano, com uns matinhos. Eu passei a mão assim, um munturo, aí eu disse: “dá até pra botar a cabeça aqui. Eu vou ficar por aqui”. Aí ficamos ali. Fizemos um fogo no meio, ajeitemos pra fazer café com pedaço de pau que tinha por ali.

Depois de comer, nós fomos dormir. Dormimos tão bem! Quando foi de manhã que nós olhemos... Menino! Quando fiscalizei a vista abaixo, a gente tinha dormindo num cemitério, no meio de cruz, de ossos...

Vocês chegaram a Salvador?

Mestre Verdelinho - Não chegamos não. Caminhemos 28 dias, de ida e volta.
Por que vocês voltaram?Mestre Verdelinho - Porque nós achava bom aquela vida de tocar pelas cidades.

Por que o nome de Verdelinho?

Mestre Verdelinho - Porque, naquele época, todo cantador tinha nome de passarinho. Aí me deram o nome de Verdilinho. Além de ser um passarinho pequeno, era quase desconhecido.
Não tinha saudades de sua família?Mestre Verdelinho - Tinha. Mas tinha medo de voltar pra casa, com medo de levar uma sola do meu pai. Naquela época, meu pai me dava cada pisa de tirar a sola.

Mas o senhor acabou voltando pra casa. Não levou a sova?

Mestre Verdelinho - Não levei porque eu cheguei no caminho e ajeitei um negocio pra minha irmã, um tamanco pra outro, uma calça pra meu pai, uma camisa... Aí eu cheguei, com cabelão, a camisa batia bem aqui, uma trouxa aqui amarrada. Cheguei bati palma [bate palmas]: “oh, de casa!”, “oh de fora”. Eu disse: “dona, me dê um pouquinho d’água”. Aí, minha mãe me trouxe um caneco d’água. A gente começou a conversar... ela nem me reconheceu... aí eu falei pra ela quem eu era, ela olhou pra mim e confirmou o filho que tinha saído de casa.

Quantos anos o senhor tinha?

Mestre Verdelinho - Doze anos.

O senhor estudou, foi à escola?

Mestre Verdelinho - Ah! Estudei nada! Quando eu tava dentro de casa, não tinha condições. Meu pai não me puxava pra eu estudar. Só queria que me lascasse no cabo da enxada.

Com quantos anos o senhor começou a trabalhar na roça?

Mestre Verdelinho - Com sete anos. Com meu pai, não tinha nada de escola. Era puxar para os pés, e a cangalha virar.

Como foi que o senhor entrou para o guerreiro?

Mestre Verdelinho - Eu era mateus do Guerreiro do Mestre Jorge, aqui mesmo em Bebedouro. Aí o Mestre Pedro Teixeira disse que só queria um mateus bom de “tampa e rampa”. Aí eu fui ser mateu do Guerreiro de Mestre Pedro Teixeira. Naquela época, eu ganhava dez tostões pra dançar. Quem me abriu os caminhos foi Pedro Teixeira. Foi ele quem me deu a vida. Viajou comigo o Brasil quase inteiro.

Naquela época, era mais fácil ganhar dinheiro?

Mestre Verdelinho - Era, porque não havia tanta tecnoligia como tem hoje. Mas, naquela época, eu não sabia o que era tecnoligia não.

E como o senhor deixou de ser mateus e passou a ser mestre?

Mestre Verdelinho - Um dia, o professor Pedro Teixeira alugou um ônibus para ir pra Brasília, para a festa dos três poderes. O ônibus chegou , mas cadê o Mestre Jorge chegar. Aí ele disse: “vamos transar o Verdilinho de mestre”. Aí eu disse: “eu não! Eu não sou mestre, sou mateus. Não vou transar de mestre sem saber!”. Eu fui bem dizer a pulso. Quando cheguei lá e cantei [cantando]:

Boa noite, senhores cheguei

De longe avistei essa terra tão boa

Não é à toa que a volta é cruel

Meu guerreiro é campeão de Alagoas

Aí,mandei brasa em cima do palco, e o povo: “Alagoas, Alagoas...” Aí eu fiquei com aquele prazer.

O senhor se arrepende de ter vivido da cultura popular?

Mestre Verdelinho - Eu acho que ainda é um pequeno elemento para mim... porque eu não sei dizer se, eu não soubesse nada, com eu iria me arranjar de hoje por diante, não sei... outra profissão nunca tive.

Quantas músicas o senhor já fez?Mestre Verdelinho - Tenho pra mais de trezentas.

O senhor não sabe ler nem escrever. Quem anota as música pra o senhor?

Mestre Verdelinho - Ninguém. É tudo de cabeça.

Qual foi o momento mais feliz na sua vida de mestre?

Mestre Verdelinho - O mais feliz? Muitos, muitos... mas tudo em regime que eu gosto: guerreiro, viola, pagode...

O senhor está satisfeito com a Secretaria de Cultura?

Mestre Verdelinho - Opa! [fica agitado] Me fale não! Tira, tira, tira... tira isso... tira tudo! Por Nossa Senhora! Pra mim, foi a pior tristeza do mundo, foi essa Secretaria de Cultura... [pausa, toma um pouco de água]

Por quê?

Mestre Verdelinho - Essa foi lasca! [pausa] Consciência para dar cobertura a mim... consciência, que é mais fino que a consideração.

O senhor ficou doente e não recebeu assistência, foi isso?

Mestre Verdelinho - Nem assistência, nem piroca nenhuma

E o seu CD, a Secretaria de Cultura patrocinou?

Mestre Verdelinho - Que patrocínio nem nada! Eu digo a vez que ela não tem um mínimo, um mínimo, de conhecimento. Ela não se interessa por mim... umas pessoas que entram no poder e não sentem o que é que a pessoa faz. Se sentissem, eles pegavam um pouco do que tinham e chegavam, liberavam... não para mim, mas para todos da cultura popular.

E agora com o seu CD, o senhor acha que as coisas irão melhorar?

Mestre Verdelinho - Melhorar, não vai melhorar, porque isso não faz melhora pra o artista. O que faz melhora pra o artista é o prolongamento de botar aquilo até cair. Eu não posso mais...

Qual o destino, então, da cultura popular?

Mestre Verdelinho - O que nós temos é bem pouco. O que nós temos estamos levando pra dentro da sepultura. Quem podia ficar com o que nós temos são os nossos filhos, mas nossos filhos não querem. E não querem por quê? Porque tem muita “civilidade” em cima, que cobre... eles não entendem.

O que o senhor diria se um filho seu quisesse seu exemplo?

Mestre Verdelinho - Eu diria: meu filho, a estrada é sua. Uma estrada é sua, a outra é minha. Não posso levar você na minha estrada. Escolha, na verdade, a estrada certa que você quer.

Entrevista concedida a Bob Omena,

do www.observatorioalagoano.com - edição n.° 35.

Foto: Emanuel Galvão (novembro/2006)