terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Reflexão: O complexo de Coelho Branco. Por Sérgio Coutinho.

Belíssimo texto. Peço licença para publicar.


O Complexo de Coelho Branco

*Sérgio Coutinho

Há muito tempo, havia os cigarros de chocolate. Luis Fernando Veríssimo escreveu uma crônica sobre a importância deles. Não exatamente deles, mas do ritual da vida adulta (abrir a caixa de cigarrilhas, escolher uma, tirar, dar um clic na caixa, bater com a ponta da cigarrilha contra a caixa...) que as crianças podiam se acostumar a reproduzir. Talvez faltem treinos para os rituais da vida adulta hoje.

Não se trata de trazer de volta aqueles cigarros (que não lembro se já comi um dia), mas de lembrar da vida que se deixa de ter. Os almoços de negócios deixaram de ser uma reunião celebrada enquanto se esperava que a comida fosse servida para se comer falando apressadamente em bandejões mais ou menos arrumados. Tudo pode ser servido como fast food menos a digestão. É um ritual cada vez mais ameaçado.

Ficou tão banal começar um relacionamento que já não se sabe mais nem mesmo como definir ou se é preciso definir ou se é preciso admitir que é um relacionamento. Pode-se dançar com alguém de costas para a pessoa e ainda assim "ficar" durante aquela música. Em outros tempos, a música dizia "Fica comigo essa noite e não te arrependerás..." hoje basta "se ela dança eu danço". Basta, assim. A pressa para ter alguém no mínimo tempo gera assim mais um fast food. Como sempre, a digestão de tudo que alimenta o espírito fica comprometida.

Não sei se a idéia é minha. Se alguém encontrou aí um plágio, é bem intencionado e por isso não digo que sou o autor. Isso parece poder ser explicado pela Psicanálise como Complexo de Coelho Branco. (Certo, a Psicanálise talvez não chame assim, mas fica o dito pelo não dito...)

Já falei sobre ele com amigos. Acharam a idéia simpática (ou são mesmo muito meus amigos para terem elogiado). Quando o Coelho Branco corria no País das Maravilhas, Alice perguntou para ele "Por que corre, sr. Coelho?" e ele respondeu "Não sei! Mas eu sei que estou atrasado!". Os rituais da vida (seduzir, degustar, baforar, cafungar...) levam tempo, exigem dedicação, e já não apenas não existe tempo. Chegamos tarde sempre para tudo que tentamos fazer. Estamos atrasados para sermos nós.

É possível dizer que a culpa é da pressão do desemprego fazendo todos se dedicarem mais e mais ao trabalho; da tecnologia gerando máquinas orgânicas, entre outras teorias repetidas ad nauseam há décadas. Isso também é parte do Complexo de Coelho Branco: precisamos achar um culpado fora de nós pois é mais conveniente do que admitir que definimos o que é o atraso, por que precisamos correr e para onde estamos indo.

Basta constatar o que acontece nos cursos de formação, seja ela no ensino médio ou em qualquer curso superior. Em seis meses a um ano, espera-se que se tenha acesso a todo o conhecimento acumulado pela humanidade sobre uma certa área do conhecimento. Somos tão condicionados a aceitar que aquele conteúdo é suficiente que chamam nos currículos de disciplinas. Vibramos com certas idéias, certas teorias. Quando terminam aquelas aulas e estamos aprovados, fechamos a gaveta correspondente como se fosse esquecida, para dar espaço no escasso ritmo de estudo para o ano-semestre seguinte. Escolhemos não nos dedicar àquilo que exige tempo.

Quando lemos revistas de negócios, normalmente dizem para aproveitarmos as férias para novos cursos (já me matriculei em um para as férias de janeiro), a aposentadoria para gerir um negócio próprio, falta apenas que digam para deixarmos todo descanso e toda reflexão sobre o que fazemos por aqui para o descanso eterno...

Ortega y Gasset, autor do "Eu sou eu e minhas circunstâncias" em que esse blog se baseou, dizia que cada vez mais bebemos sem sede, comemos sem fome e amamos sem tempo. Atribuimos cada vez menos tempo para a própria satisfação. Pelo menos os Rolling Stones diziam I can get no satisfaction... but I will try!" Falta essa tentativa, esse esforço por si mesmo em muitas das escolhas durante a vida. Falta responsabilidade pelas escolhas para alterá-las. Mas também falta tempo para isso, estamos atrasados.

*Este texto é de auto-ajuda, mas apenas porque foi escrito para eu me ajudar a passar o tempo durante uma noite de insônia.

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