quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Artigo: Hora de pagar as contas - tratamento Desigual para os desiguais - respeito ao princípio constitucional da isonomia.


HORA DE PAGAR AS CONTAS: TRATAMENTO DESIGUAL PARA OS DESIGUAIS – RESPEITO AO PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA
(Breve estudo sobre a ação afirmativa em favor dos afro-descendentes)


Rita de Cássia Tenório Mendonça*

"É difícil dizer da verdadeira intenção das pessoas, mas com certeza, poucos são os seres humanos que não desejam viver num mundo mais justo que o atual. Do pior criminoso ao mais honesto dos homens, feita esta pergunta, teríamos indiscutivelmente uma resposta em sentido afirmativo quase que unânime.

Mas por que a maioria das pessoas age de forma a contrariar essa intenção universal? Tal pergunta é de difícil resposta, mas arrisco-me a dizer que o sentimento universal de bem comum, apesar de presente em quase todos os seres racionais do planeta terra, exerce ainda menor influência nos atos da vida cotidiana do que o sentimento individualista próprio do mundo capitalista atual. O resultado prático imediatista do ato individual sempre se sobrepõe ao resultado a longo prazo, porém eficaz, do ato coletivista.

Temos hoje em voga a questão do racismo, do preconceito e das cotas no Brasil. É consenso geral entre as pessoas de bom-senso, que vivemos em um país de desigualdades, onde o preconceito e o racismo estão, há muito, incutidos no cerne das relações interpessoais pátrias. No entanto, quando se fala em reparação pelos mais de 300 anos de escravidão, injúria, opressão e discriminação, ou em tentativas de inclusão social do negro, o sentimento egoísta individual e o medo de ter que ceder quaisquer direitos em favor de uma parcela oprimida da população, fala mais alto.”(Santana, Guilherme Guimarães. Preconceito sem cara: cotas, racismo e preconceito. Jus Navigandi, Teresina, a.8, n. 427, 7 set.2004).

Há pouco mais de uma semana, do Dia da Consciência Negra (20/11/2006), é momento adequado para a reflexão das questões que interessam a parcela afro-descendente da população brasileira.

Nem bem surgiram as primeiras discussões acerca da ação afirmativa em favor da população afro-descendente no país que perfiladas, quase que imediatamente, apareceram as mais diversas críticas, a maioria tendo por base a suposta ofensa ao princípio da igualdade, previsto constitucionalmente (art. 5º, CF/88).

Ao ver de parcela considerável da população, o sistema de cotas para os afro-descendentes, ou seja, a reserva legal de vagas nas entidades públicas de ensino superior, como uma ação afirmativa/inclusiva da população negra brasileira, consistiria em privilégio sem fundamento, que resultaria, por sua vez, em nova desigualdade, favorecendo apenas uma parcela da sociedade.

Será que se estaria alimentando, de fato, ainda mais, um sistema de castas sociais em detrimento do estado democrático de direito e da sociedade como um todo?

Nesse passo, pergunta-se, ainda: os que demonstraram descontentamento se opõem, diretamente, a ação afirmativa? A política de inclusão social da parcela negra da população?

Parece que não.

É de conhecimento geral a situação a que foram impelidos os afro-descendentes em sua secular história de opressão. A população não se opõe a esse dado histórico, e nem a necessidade de atenuá-lo. Opõe-se, sim, grande parcela da população, ao “preço” que lhe custará apoiar esta ação afirmativa, o que já é uma outra discussão.

Os dados estatísticos são absolutos: os afro-descendentes, em sua quase maioria se concentram na categoria menos favorecida da sociedade, com pouco acesso a bens e serviços, percebendo os menores salários e ocupando os postos de trabalho menos qualificados, salvo exceções incipientes. Não se contestam as causas, portanto; mas o “efeito” de tal constatação, que é a necessidade de adoção das temidas ações afirmativas (medidas tendentes a minimizar o passado de discriminação e injustiça). O que se receia é subsidiar, com o próprio suor, o aporte necessário para a implementação das medidas.

Não há como negar: a promoção do bem comum e a igualdade – embora sempre bem recebida –, consiste em parcela de sacrifício a ser suportada pela sociedade como um todo, que é quem lhe financia. E é esta mesma população que está cansada de pagar duas (senão três ou mais vezes) o preço que se lhe impõem – em razão dos desmandos políticos e má administração pública –, sem que, ao final, consiga perceber o resultado positivo de seu investimento e empenho.

Não há quem aceite passivamente “pagar o preço desse débito social”, que já vem sendo transmitido de geração em geração, sem que se dê resposta definitiva e adequada. “Devo, não nego”. Mas parece mais atraente, por hora, não saldar o débito; e sim transmiti-lo para as gerações seguintes, numa situação indefinida e desconfortável para os “credores” desse débito social.

O cerne dos argumentos contrários à política de cotas é, como se disse, justamente, a quebra do princípio da igualdade, uma vez que, aparentemente, um grupo de pessoas (os afro-descendentes) seria privilegiado em detrimento do todo, visto que os critérios para sua inserção no ensino superior e público ocorreriam em razão de requisitos que somente a esse grupo beneficiaria, enquanto os demais, não integrantes dessa minoria, concorreriam exatamente para as mesmas vagas, mas submetidos a regras menos favoráveis, diferenciadas. Em suma: pessoas competindo para vagas no ensino público superior em suposta desigualdade, submetidas a condições diferenciadas de admissão.

No entanto, o que ocorre, com essa medida, é justamente prestígio ao princípio da isonomia, uma vez que se passa a proporcionar tratamento diferenciado aos desiguais, com o intuito de trazê-los, todos, ao mesmo patamar.

O princípio da igualdade proíbe é o tratamento diverso para pessoas em igualdade de condições. E esse não é o caso dos afro-descendentes, que se encontram em flagrante desvantagem na escalada social, em razão de toda sua carga histórica, como exaustivamente provam os estudos e dados estatísticos.

Tratar desigualmente os desiguais, já dizia o Mestre Rui Barbosa, é medida necessária para que, finalmente, se igualem.

O problema da igualdade é que todos só a desejam com relação a quem está em situação melhor do que a sua (...) as pessoas desejam, sim, aumentar quaisquer direitos já conquistados e nunca ceder em favor dos menos favorecidos, quando tal ajuda implique em ter que dividir direitos (Santana, Op.Cit.).

Lamentavelmente, não se pode aguardar indefinidamente o melhoramento do ensino público como um todo e o soerguimento do ensino superior, momento quimérico em que a população negra poderia respirar aliviada, certa de que competiria em pé de igualdade e justiça, com os demais, pelas vagas acadêmicas. Por hora, o que a realidade nos mostra, é que os afro-descendentes, em geral, advindos do ensino público sucateado, são os “guerreiros vencidos” antes mesmo de iniciada a competição pela academia.

Há muito se foi a “hora H”, no que respeita a adoção de ações afirmativas e medidas compensatórias da história de injustiça, discriminação e preconceito a que a sociedade, como um todo, vem submetendo, ainda que de forma omissiva, a parcela afro-descendente da população, relegando-a aos planos inferiores da pirâmide social.

E o mínimo que pode ser feito, como forma de amainar um dano que não pode ser remediado por completo, mas, apenas, contemporizar seus nefastos efeitos, é a adoção de ações afirmativas e políticas públicas compensatórias.

Diferenças criadas em favor de grupos discriminados, em geral, hipossuficientes – repita-se – não se constituem em privilégios indevidos, mas medidas adotadas a fim de reduzir, tanto quanto possível, as injustas desigualdades sociais.

Temos exemplos de políticas de promoção de igualdade exitosas, como, v.g., a inserção no mercado de trabalho da pessoa com deficiência. Igualmente, nesse caso, a proteção do Estado visa à salvaguarda dessa minoria que, de outra forma, estaria em situação de risco social, eis que não teria condições de uma inserção justa e democrática na sociedade, a par de suas limitações para concorrerem pelas oportunidades, ou seja, já iniciariam a “competição” com visível desvantagem. Impossível, portanto, nesses termos, sagrarem-se vencedores.

O Brasil possui um infeliz histórico de discriminação sutil e preconceito velado que precisam ser mitigados. Trata-se do preconceito silencioso que permeia as relações travadas com as minorias hipossuficientes (negros, índios, idosos, mulheres, crianças, obesos, homossexuais etc.).

A ação afirmativa, no caso dos afro-descendentes, vem como uma tentativa de minimizar a injustiça social que se fez até então. A política de cotas é como que uma confissão: admite-se a prática do mal, buscando-se, agora, minimizar os transtornos dele decorrentes, uma vez que não há como reparar o dano causado, por completo.

Não restam muitas opções: o débito existe; e ele é de toda a sociedade brasileira, ainda que de forma transversa, pois que responsáveis indiretos pelas escolhas tortas dos representantes que elegeram. Trate-se de saldá-lo, antes que se torne impagável.


BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Júris Síntese Millenium. Editora Síntese Ltda. 2000. CD-ROM.

BRASIL. Lei n.º 8.213, de 24/07/91. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.

BRASIL. Decreto n.º 3.048, de 06/05/99. aprova o Regulamento da Previdência Social e dá outras providências.

EUA. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução n.º 2.106-A da Assembléia das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965. Aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 23, de 21.6.1967. Ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Entrou em vigor no Brasil em 4.1.1969. Promulgada pelo Decreto n.º 65.810, de 8.12.1969. Publicada no D.O. de 10.12.1969. Júris Síntese Millenium. Editora Síntese Ltda. 2000. CD-ROM.

GENEBRA. Recomendação n.º 111, da OIT, de 25/06/58, que suplementa a convenção de mesmo número, define discriminação, formula políticas e sua execução.

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Direitos Humanos, cidadania, trabalho. Belém, 2004.

HUMENHUK, Hewerstton. O direito à saúde no Brasil e a teoria dos direitos fundamentais . Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 227, 20 fev. 2004. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4839. Acesso em: 26 março de 2004.

Santana, Guilherme Guimarães. Preconceito sem cara: cotas, racismo e preconceito. Jus Navigandi, Teresina, a.8, n. 427, 7 set.2004. Disponível em www.jus.com.br
. Acesso em novembro/2005.

NÚCLEO DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO NA OPORTUNIDADE DE TRABALHO EM ALAGOAS. Maceió/AL. Atas das reuniões realizadas no período 2000/2006.

CURSO DE DIREITOS HUMANOS – TEORIA E PRÁTICA – Programa FGV Management. Maceió/AL. Material didático do período outubro/2005 a janeiro/2006.


* é Escritora, Assessora Jurídica do Ministério Público do Trabalho desde 1997, lotada na Procuradoria Regional do Trabalho da 19ª Região/AL, Integrante do Núcleo de Combate as Desigualdades nas Oportunidades de Trabalho em Alagoas, Colaboradora e Consultora voluntária da Rede Saci – Solidariedade, Apoio, Comunicação e Informação às pessoas com deficiência e Professora Virtual de Direito do Trabalho e residiu toda infância e adolescência em União dos Palmares, a terra de Zumbi.

Foto: Casa de Iemanjá, Ponto de Cultura localizado na Ponta da Terra, em Maceió/AL.

Por Rita Mendonça (outubro/2006).

2 comentários:

  1. Olá Chamo-me Sérgio Daúde e acabo de passar pela sua página.Gostei imenso da forma como aborda os temas sociais.Esses são problemas sociais que não são exclusivamente do Brazil...são problemas que aquí em Portugal são um lugar comum, refiro-me ao racismo, às diferenças sociais entre ricos e pobres...
    Possuo um blog em http://desigualdadedireitos.blogspot.com onde também falo, critico e denuncio as várias formas de desigualdades e discriminação existentes nesta sociedade de uma forma genérica (seja por motivo de género, raça, origem nacional, aparencia,ou outro estapafúrdio que alguém usa para justificar a sua prepotência).
    De qualquer modo, gostaria de estabelecer um link aí para a sua página......
    muito cordialmente
    S+ergio Daúde.

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  2. Caro Sérgio,
    É sempre uma alegria encontrar pessoas que se afinam com o que penso. E também perceber que meu trabalho no blog não é em vão.
    Obrigada por me visitar. Fique à vontade para estabelecer o link.
    em breve te visitarei também.
    Um forte abraço alagoano.

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