quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Adélia na cozinha - livro dirigido a crianças com deficiência visual.

Adélia na cozinha
Ethel Leon

Adélia na cozinha é o primeiro título de coleção de livros dirigidos a crianças com deficiência visual, lançado pela editora WG Produto. Com projeto gráfico de Wanda Gomes, texto de Lia Zatz e ilustrações de Luise Weiss, o volume tem escrita alfabética e em braille BR.

O sistema do braille tem novo processo que não fura o papel, permitindo a edição de grandes tiragens e, em conjunto com a impressão offset, garante ao material maior durabilidade e a possibilidade de unir o braille a cores e texturas, explica o texto da assessoria de imprensa. O braille BR é patente da designer Wanda Gomes.

Assim, é possível ler a escrita alfabética (fonte Scala Sans) e a braille BR  sem que uma interfira na outra. A durabilidade é indeterminada e os pontos não cedem à pressão dos dedos como na impressão convencional. Além disso, a qualidade visual não é prejudicada, já que o novo sistema de impressão não rompe o papel e não causa baixo relevo no verso da folha.

Não bastasse esse grande avanço para a produção de livros igualmente destinados a crianças com ou sem deficiência visual, Adélia na cozinha apresenta diferentes acabamentos gráficos que fazem da leitura uma sofisticada experiência tátil.

Cada página ímpar apresenta um objeto. A cesta de frutas tem textura rugosa, o abacaxi também, as uvas são lisas e escorregadias, como se tivessem sido recém lavadas. O detalhe do bordado em tela de uma toalha é impressionante. Revirei o livro em todas as direções, tentando ver se era colado artesanalmente não era – tal o realismo da imagem fotografada e impressa. 

A banana se apresenta com a casca lisinha e seu conteúdo parece segurar o gesto da mão que a percorre. É como se as fatias de pão, saídas da torradeira elétrica, tivessem migalhas secas, prestes a saltar da superfície da página, e a vontade de tirar partes delas, arranhando-as com as unhas, faz parte da leitura do livro.

Algumas páginas exalam fragrâncias, muito sutis. Mas é a experiência tátil que predomina, sublinhada pelo uso do braille, como na imagem do relógio, na qual a escrita por relevos se aplica dentro do objeto, designando os números.

As ilustrações em aquarela, de Luise Weiss, têm algo das naturezas mortas de Matisse, não pelos aspectos decorativos, mas por uma espécie de simplificação das formas e por uma ordem planar dos elementos. São para serem mostradas, uma a uma, tocadas, percebidas nos detalhes. O conjunto não se perde, pois as cores de fundo são vigorosas e mantém a unidade de todas as figuras, deixando ver as pinceladas, as manchas da aquarela.

Páginas ímpares são ocupadas por ilustrações, enquanto as pares se destinam à área do texto. As letras são impressas em branco ou em preto, a depender da tonalidade de fundo, cores vivas chapadas. Só nas últimas páginas do livro, a ilustração ocupa a direita e a esquerda. Nela se encontram todos os elementos que os leitores conheceram nas páginas precedentes, frutas, torradas flores, suco, toalha.

É possível, aí, fazer um reconhecimento das partes – as representações anteriores – e o todo,  a conclusão da história de Lia Zatz: um café da manhã inteiramente preparado pela protagonista, Adélia nome escolhido em homenagem a Adélia Sigaud, cega, filha de Xavier Sigaud, médico francês que esteve a serviço da corte de D.Pedro II, e que foi a primeira mulher brasileira a dominar o sistema braille.

Ao longo da história, a menina – cuja imagem nunca nos é mostrada, nem parcialmente –   abandona sua postura passiva das primeiras páginas, quando tenta acordar a mãe para pedir o café, e se transforma numa descobridora das coisas e, sobretudo, de sua própria capacidade de organizar a refeição, não apenas para si própria, mas para outros.

O fato de o livro não apresentá-la com qualquer imagem faz a ênfase recair sobre suas atividades e os objetos implicados nelas. Somos levados a entender uma organização, um projeto, sim, pois preparar um café da manhã é realizar um projeto.

Esse é um livro que nos faz ver como somos deficientes. Deficientes no uso de nossos sentidos, cada vez mais dominados pela visão, analfabetos na percepção sensível do mundo. O livro pede para ser tocado, acariciado, arranhado, sentido.

Desafia, portanto, a vida contemporânea em sua mesquinha experiência do tempo escasso e aflito. Pois, apesar de suas frases curtas, de texto conciso, de sua leveza como objeto, esse é um volume que espicaça nossa curiosidade, impossível de ser apreendido em poucos minutos. Fácil de imaginar sendo contado à exaustão para crianças, que se embebedam naquilo que se repete.


Fonte: http://www.agitprop.com.br/atualidades_det.php?codeps=MzA4

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