“Conta pra pagar, carta de amor, tudo vira lixo”, diz Ceumar em uma de suas lindas canções. A frase se fixou em mim, e foi parar no perfil de meu msn. Lá, permanece por dias.
Na semana passada me surpreendi, já nas primeiras horas de um dia que se desenhava agradável, constatando que Ceumar esqueceu de mencionar mais “coisas” que viram lixo.
Infelizmente, “gente” também vira lixo, Ceumar. E não só na formação da compostagem dos solos dos cemitérios (cemitério tem sempre pé de jambo. Por que temos resistência a comer frutas das árvores frondosas dos cemitérios?), mas como parte do lixo doméstico, marca da modernidade que vergonhosamente carregamos.
No releasing diário de notícias locais que eu consulto, estava estampada nossa vergonha do dia: “Uma criança de 12 anos de idade morreu atropelada dentro do Lixão de Maceió. De acordo com os primeiros levantamentos, o garoto foi atropelado por um trator enquanto dormia no local, coberto por papelões”.
Segundo a matéria jornalística, o veículo passou por cima da cabeça do menor, que faleceu no local, antes mesmo que pudesse receber qualquer tipo de socorro médico. O acidente ocorreu por volta das 5h30 da madrugada da quinta-feira, dia 30 de julho de 2009.
De acordo com a Polícia Militar de Alagoas, o caso ocorreu enquanto o motorista do trator realizava seu trabalho de compactação, revirando o lixo no local. O motorista do trator fugiu do local no próprio veículo, com medo de ser agredido pela população (e isso aconteceria, mesmo, dado o grau de intolerância e agressividade que nós, seres humanos, nos encontramos).
Há alguns anos venho me dedicando mais ao estudo e à pesquisa na área da inclusão social da pessoa com deficiência. Mas até uns cinco anos atrás, eu acompanhei de perto e com entusiamo as políticas públicas em meu estado, relativas a proteção da infância e da juventude, e a destinação de nosso resíduos sólidos. Por meio da atuação da minha saudosa chefia, no Ministério Público do Trabalho em Alagoas, Dr. Alpiniano do Prado Lopes, o Dr. Cidadania, estudei programas, participei de oficinas e acompanhei a implantação, nos diversos municípios alagoanos, de projetos de ONGs, e do próprio poder público, no combate ao trabalho infantil em suas piores formas, e das políticas socioambientais.
Já naquele tempo, o trabalho no lixo era preocupação nossa. Integrei o Fórum Estadual Lixo e Cidadania, onde por anos O MPT desenvolveu um trabalho em parceria com outros órgãos e entidades, inclusive realizando a primeira (e única) Conferência sobre Resíduos Sólidos em Alagoas (etapas regionais e a estadual).
O trabalho infanto-juvenil no lixo era uma preocupação dobrada. Por meio do Fórum Estadual pela Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente Trabalhador, que era coordenado pelo Dr. Cidadania, realizamos diversas ações, muitas exitosas, para a retirada das crianças daqueles locais e condução a ambientes mais adequados para quem se encontra em fase de formação de caráter de de aprendizado cidadão.
A missão não era fácil. Como dizer para um adolescente de 15-16 anos, já com filhos, morando num barraco de papel, ao lado do lixão, sem emprego, sem freqüentar escola, sujeito à violência social de toda ordem, em péssimas condições de moradia, e que retira do lixo o seu precários sustento (tanto vendendo material reciclável, quanto se alimentando dos restos que consegue recolher), que ele deve largar a atividade e retornar para as salas de aula, recebendo uma bolsa-auxílio de R$ 45,00? (pelo que me lembro, era esse o valor da bolsa do Programa pela Erradicação do Trabalho Infantil – Peti, até bem pouco tempo). Ainda assim, utopicamente insistíamos (não tínhamos outra alternativa).
Com a proibição da presença de crianças no local, com a construção de creches na comunidade, com a disponibilização de bolsas de programas para os moradores da região, íamos exigindo que o município engrossasse a fiscalização, cadastrando catadores de material reciclável, fomentando a formação de cooperativas, adquirindo equipamentos para o enfardamento do material coletado e a contenção dos impactos ambientais, construindo muros ao redor do lixão, desenvolvendo projeto para a implantação do necessário aterro sanitário (que ainda não saiu do papel), entre outras medidas.
Por volta de 2002, não víamos mais crianças no lixão de Maceió. Era um conquista. As coisas estavam perfeitas? De jeito nenhum! Até porque as ações em políticas públicas são complexas. Mudança de gestor; interesse político; um governo que em vez de continuar com as ações do passado, as destrói e constrói outras, para dar sua marca, como parte do marketing político para as próximas eleições; a degeneração da humanidade daquelas pessoas, que por tanto tempo se submeteram a péssimas condições de vida e se embruteceram, além de perder a confiança e esperança de soluções vindas por parte do governo; o despreparo dos agentes públicos envolvidos, eram tantos os problemas... “tudo vira lixo...”
Integrei diversos movimentos sociais em razão de minhas atribuições como assessora jurídica no Ministério Público do Trabalho. Encontrei lá, o que procurava de razão para conduzir minha trajetória profissional. Encontrei meu lugar, e entrei mais fundo nas lutas do que requeriam as minhas atribuições como servidora pública. Era por mim, e pelo mundo que eu acredito.
Nessa jornada pessoal, venho observando o desmantelamento dos fóruns, conselhos e espaços de discussão criados pela Constituição de 1988, como formas de permitir ao cidadão escolher e colaborar com a gestão e a implantação das políticas públicas. Os grupos se enfraqueceram. Junto com eles, suas ações. As pessoas, em menos de 10 anos, desanimaram, tamanha as adversidades que encontraram. Afinal, é tanto doação para resgatar tão poucos...
Por falta de uma rede de proteção fiel e coesa, não havia como prosseguir o trabalho. Se um elo quebra, a corrente toda perde sua finalidade.
Silenciosamente, o lixo e as pessoas que lhe compõem – sem que isso nos cause mais espanto – foram se acomodando nos lugares onde antes se encontravam. As “crianças-lixo” também retornaram para o que alguns entendem como seu habitat natural.
Tem gente que acha que criança deve trabalhar, para não virar marginal, porque o trabalho dignifica. Mas de que trabalho estamos falando??? Quem diz isso, se isso baseia em suas experiências do passado, quando depois da escola, de almoçar, tomar banho e fazer as tarefas, se partia para ajudar o pai na mercearia da família, por exemplo, como forma de se inteirar dos negócios da família e ir adquirindo responsabilidade, ganhar um “troco”, coisas assim. Estamos falando de algo mais “hard”. Empresas e empresários que aumentam seus lucros tomando o trabalho de crianças e adolescentes, por pagamento vil.
Tudo em sua hora. Dizem que tem gente de instinto ruim. Deve ter. Mas, em geral, gente não se nasce marginal. O caráter vai se formando. Criança trabalha ou vira marginal como parte da engrenagem da “máquina mortífera” que hoje chamamos de sociedade, que na defesa de seus interesses mais mesquinhos atropela a tudo e a todos, passando por cima de vidas, como fez o trator da compostagem. Simbolicamente, na cabeça, onde se encontra nosso maior tesouro.
Carlos André, de 12 anos, foi “trabalhar” no lixão. Será que acordou com insônia, refletindo sobre a vida, e resolveu ir para o lixão para ver se encontrava sua dignidade trabalhando entre restos de comida podre, papel higiênico e vidros quebrados?
Foi de madrugada, pois durante a noite é quando circula mais tranquilamente, pois é quando o resto da sociedade fecha os olhos não somente para dormir, mas também para fazer de conta que não sabe que “criança-lixo” existem, e que são mais que um sonho ruim, que já transborda para nossas realidades. A maioria da sociedade não vai ao lixão (quer dizer, em Maceió, a alta sociedade vai, sim, mas para comprar drogas ou se reunir com matadores profissionais, para encomendar mortes com tranqüilidade. É que o “lixo” de nossa sociedade usa o espaço dos arredores do lixão para delinqüir, para fazer as coisa que precisa esconder dos demais, da high society, por não pegar bem, por não cheirar bem, para não se sujar...
De noite, os gestores e agentes públicos também dormem. Eles também são gente; e um dia também vão virar lixo (alguns, já são puro lixo). Ninguém viu e nem impediu o acesso de Carlos, embora há muitos anos o Município de Maceió tenha um compromisso formal com a rede de proteção de não permitir o acesso de crianças e adolescentes no lixão (será que se esqueceu da multa para o caso de serem encontradas crianças no lixo?).
Desde a Revolução Industrial que criança trabalhando é um problema. Entre outras coisas, porque, cansadas, dormem mesmo, sem cerimônias, em qualquer lugar, até em pé.
Carlos resolveu cochilar no seu “ambiente de trabalho”, justamente na “linha de produção”. Papelões como cobertor para o frio. Ainda era madrugada, tava escurinho... Ficou invisível para o motorista do trator compactador do lixo. Não acordou mais.
A morte de Carlos, para que não se repita, perpassa por reflexões que vão por um viés muito mais amplo, e que se não prestamos atenção, nos perderemos antes mesmo de fazer a necessária conexão. Sua causa mortis vai muito mais além, e não se conteria nas poucas linhas disponibilizadas para a anotação no atestado de óbito.
Diariamente, no mundo, são produzidos dois milhões de toneladas de lixo, sendo que a contribuição brasileira neste volume fica entre 25 a 130 mil toneladas/dia. O problema do lixo é tão sério que há alguns anos virou tráfico nos países desenvolvidos. O resultado disso é que grupos criminosos resolveram transformar em lixeira o fundo do mar e o território de países pobres ou emergentes, com pouca ou nenhuma legislação ambiental (diz matéria publicada pelo SFT Notícias na mesma semana).
É complexa, a problemática do lixo; principalmente a questão de quem vive do lixo. Quando acordaremos para ela? Quando também virarmos lixo ou adubo de pé de jambo? Creio que aí será tarde demais...
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