sábado, 6 de junho de 2009

Décadas de internamento retiraram irremediavelmente a autonomia de pessoas que poderiam ter uma vida normal.

Muitas vezes pensamos que esta realidade não ocorre mais.
Sobre o assunto, muito mais o silêncio como resposta.
Afinal, grande parcela dessas internações ocorrerram porque as famílias não queria se dedicar às pessoas com transtornos mentais, num misto de medo, vergonha, desconhecimento e apatia.
Este quadro de pessoas plenamente capazes de vida em sociedade confinadas em hospitais psiquiátricos ainda está longe de se considerar solucionado. Até porque ainda estamos vivendo as consequências disso, como é o caso de Margarida.
Deixemos claro que não estamos aqui culpando os familiares de quem quer que seja. Afinal, conviver e administrar os surtos não é tarefa simples, e para a qual o estado nunca conferiu o suporte necessário para que as pessoas fossem tratadas junto dos familiares, como as demais doenças, sem a necessidade de internação.
Há casos em que a internação é inevitável, sabemos.
Mas na maioria das situações, informação sobre como cuidar dessas pessoas, apoio médico-psiquiátrico nas crises e acesso a medicamentos seria suficiente para mantê-las vivas.
Falo vivas, pois resumir sua vida a um quarto, dentro de um hospital, por quase cinquenta anos não pode ser chamado de vida.
Ao menos, vida digna, não é.
Leiam e reflitam.



Margarida foi internada em 1964: 45 anos depois, a esquizofrenia residual não impediria a saída do hospital. Ela, porém, não quer nem pensar em sair e resigna-se a ver o mundo apenas pela janela

Renata Mariz

Publicação: 02/06/2009 08:28 Atualização: 02/06/2009 08:29
As lembranças da vida de Margarida* resumem-se aos trabalhos de costura em um ateliê, vidros de remédios, pavilhões lotados, companheiros falecidos. Para a mulher que foi internada em 1964, exatamente no ano em que as Forças Armadas deram o golpe militar, pouco importa se o Brasil voltou ao regime democrático 21 anos depois. Ela, depois de 45 anos, está no mesmo lugar, dentro do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre.

Com uma esquizofrenia residual, Margarida continua ouvindo as vozes que a colocaram no manicômio. Dois padres insistem em falar com ela, que hoje não mais dá bola aos chamados. “Ontem mesmo, quando eu estava deitada, eles ficaram no meu ouvido. Se fosse antes, eu ia pular da cama. Mas agora me controlo”, conta.

O bom estado de saúde faz da senhora de 70 anos uma das 9 mil pessoas que, segundo o Ministério da Saúde, poderiam sair dos hospitais e morar em residências terapêuticas. Mas além de não haver casas em quantidade suficiente para toda essa demanda, muitas vezes o próprio paciente reluta em deixar a instituição, a exemplo de Margarida. “Não quero sair daqui”, afirma a mulher.

Resistência natural de quem se habituou ao dia a dia repetitivo do manicômio, onde o mundo está à margem, não faz parte da realidade. Enfrentar a rua lá fora, tão diferente de como ela conheceu, dá medo. A moeda que Margarida manuseava, o cruzeiro novo, passou por seis mudanças até chegar ao real de hoje. Nesse período, o Brasil teve oito presidentes. Jogou 10 Copas do Mundo, saindo vitorioso de três.

Nada disso, porém, faz parte do universo dela. Seus dias se passam entre idas à igreja, que fica dentro do complexo hospitalar, e conversas com colegas tão ou mais antigos que ela no manicômio. “Gosto de rezar para Nossa Senhora de Fátima, sou devota dela”, diz — e beija a medalha pendurada no pescoço.

Doença consolidada
O desligamento da realidade, segundo Vera Sebben, representante da Diretoria de Atenção a Usuários Moradores, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, é uma consequência da rotina imposta ao paciente dentro de um hospital, psiquiátrico ou não. “Acarreta perdas cognitivas irreparáveis, a doença acaba se cronificando depois de muito tempo de isolamento”, explica. Segundo ela, só dentro de casas comuns, em meio à sociedade, os ex-internos retomam a autonomia perdida.

Por mais fantástica que seja a experiência das residências terapêuticas, entretanto, nem todos os pacientes hoje dentro de manicômios teriam condições de viver nas casas supervisionadas, devido ao alto grau de dependência e gravidade da doença. Coordenadora de desinstitucionalização da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Patrícia Albuquerque reconhece que uma outra estratégia tem de ser adotada. “A residência terapêutica hoje não dá conta da complexidade de cada caso. Temos de pensar em novas formas de desinstitucionalizar as pessoas”, ressalta.

Fonte: Infodefnet n.º 4243(www.defnt.org.br).

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