quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Opinião: Um discreto gesto de solidariedade.


Um discreto gesto de solidariedade
(sobre o seqüestro de Maria Luísa, em 01.10.2006) *

Na manhã seguinte ao dia em que tomei conhecimento mais detalhado do trágico seqüestro da pequena e bela Maria Luísa, acordei com um gosto de ranço na boca. O acontecimento caiu com tanta violência em minha vida, que obscureceu a não menos impactante notícia da queda do avião da Gol.
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Talvez por envolver uma criança tão pequena e na cidade onde resido, talvez por ter uma filha que no próximo dia 12 de outubro completará 5 anos, e é a razão de meu viver, e que por mais que eu venha a ser um ser humano desprezível, famigerado e ainda que mereça inúmeros castigos e maldições, ela continua a ser apenas uma criança ingênua e sorridente, ainda sem “contas a prestar” com a humidade... não sei.
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O fato é que bloqueei o sofrimento dos familiares das vítimas do acidente aéreo e me concentrei em refletir sobre o caso do seqüestro e esperar notícias da pequena.Confesso: não fiz nenhuma oração para que descansem em paz as vítimas do acidente aéreo e nem para que sosseguem os corações de seus familiares. Mente ocupada. Não tive tempo.
Talvez pelo amor incondicional que tenho pela minha filha eu me aproximei mais da dor dos pais de Malu (será que é esse seu apelido?).
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Essa dor aderiu a minha alma, e vem tirando as poucas alegrias que me restam. Afinal, quem consegue ser feliz hoje em dia?
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No máximo, nos sentimos aliviados em “sobreviver” supostamente seguros e saudáveis. E vamos levando...
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Mas tem uma dor que ainda incomoda mais: penso ininterrupta e dolorosamente nos medos e angústias ‘fundados’, lamentavelmente, que devem estar povoando a mente desse pequeno anjo, onde quer que ele se encontre.
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Como dorme? O que come? Será que toma banho? E a sua saúde? Rezo para que a fúria dos seqüestradores tenha se abrandado e ela esteja viva e bem.
Sinto calafrios e receios, ao tempo em que rogo por piedade, silenciosa, cada vez que me vem à mente a sua imagem, que conheci na linda foto que vem circulando os meios de comunicação, num misto de esperança e súplica de seus familiares à população em geral e aos seqüestradores.
Detesto “correntes” e emails padronizados, mas assim que recebi o que divulgava sua foto, tratei de encaminhá-lo para todos os endereços eletrônicos arquivados em minha caixa postal. Nem os amigos que se encontram em outras unidades da federação, ou mesmo as pessoas que tenho contato apenas profissional e esporádico escaparam de minha "sanha louca", mas justificada.
Hoje pela manhã presenciei a prova mais linda de “solidariedade anônima” que eu pude ter nesses últimos dias: com o carro travado e os vidros completamente fechados (pois o terror da violência social e o pânico finalmente tiraram os disfarces e estrearam definitivamente nas terras Caetés), parada, esperando o sinal abrir, na orla, vi uma vendedora de jornais, tentando vender o seu produto expondo um dos periódicos locais de forma não convencional, completamente destrinçado, destacando o caderno interno, especial, onde foi publicada a foto da bela menina, em vez da parte geral, que estamos acostumados a observar, que contêm as manchetes do dia e o nome destacado do impresso.
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Segundo o Mestre Aurélio Buarque de Holanda, ser solidário significa partilhar o sofrimento alheio, se propondo a mitigá-lo.Sei que sofrimento desta proporção não se suaviza com remédio algum.
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Mas demonstrações dedicadas, embora anônimas, como essa, trazem o alento de que a população alagoana se inquietou e busca adotar as medidas que estão a seu alcance, ainda que discretas e incipientes, em favor da pequena e seus familiares.
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Ricos e pobres, católicos e simpatizantes da Igreja Universal, parentes e completos desconhecidos, todos estão revoltados, mobilizados e atentos, buscando, em gestos mínimos, como uma prece, um olhar vigilante pelas ruas, o envio de um email, ou uma simples mas efetiva inversão da ordem dos cadernos de um jornal, contribuir para o desfecho feliz dessa tragédia.
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Toda a simpatia do mundo para o gesto solidário da anônima vendedora. Toda a proteção do mundo para a meiga Maria Luísa. Nós, esses ilustres e impotentes desconhecidos, esperamos ansiosos seu retorno em segurança.

* O que seria um assalto na porta de uma panificação, foi transformado no sequestro de Maria Luísa, de dois aninhos, que foi levada dos braços de sua mãe, servindo de escudo para os seqüestradores, no momento em que seu pai, policial civil, tentou reagir em defesa de sua família. Final feliz: cerca de 15 dias depois do ocorrido, a garota é resgatada pela Polícia, sem qualquer indício de maus tratos ou violação (artigo publicado em 03/10/2006, em palavrasdeabsinto.blogspot.com).

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