terça-feira, 28 de novembro de 2006

Conto: Dignidade.



Conto
DIGNIDADE*

Ela atravessou a rua movimentada, repleta de sonhos e esperanças. Olhos brilhantes, um leve sorriso esboçado no rosto visivelmente jovem. O coração compassado a muito custo, mas cuja batida, de tão forte, parecia que ia ser ouvida no momento da entrevista.

Embora tivesse pressa, cruzou a larga avenida pela faixa, ao acender-se o semáforo para pedestres, embora tal ato aumentasse, substancialmente, o caminho a ser percorrido até o seu destino. É que era moça criada com muitos cuidados, embora de origem humilde. Tinha sido bem ensinada a cumprir as regras, normas e orientações vindas dos mais velhos e das autoridades, sem muito questionar.
“Agora ia dar certo!” – falou para si mesma. Com muito sacrifício, formou-se em magistério em sua cidadezinha natal, lá no alto sertão, lugar onde a dor, o sofrimento e a efemeridade das coisas ensinam que a vida é só para os corajosos, para os que querem um pouco mais do que, simplesmente, “ver o tempo passar na janela”. Não, não permitiria que secassem sua pele e seus sonhos, como secavam periodicamente as paisagens de seu torrão!

Adiantou-se bem nos estudos. Só completaria 18 anos dali há 8 meses. Mas ouviu falar que já podia trabalhar com carteira assinada, “tudo direitinho, que depois dos 16 anos já podia”. Assim, viera para a “cidade grande”, certa que conseguiria o tão sonhado “primeiro emprego”, com o qual – em seu coraçãozinho franco – ansiava ajudar a família.

Luizinho, seu irmão, por certo enfrentaria menos dificuldades para concluir seus estudos. Quem sabe até – menino esperto e ligeiro que era – pudesse prosseguir e chegar à universidade. Filho doutor... que alegria para seus pais!

Para o seu pai – artesão habilidoso – mais nunca devidamente reconhecido em sua comunidade – compraria o pirógrafo profissional. Nas poucas horas vagas que lhe sobravam da lida no corte da cana dedicava-se a arte de talhar madeira. Qualquer uma que lhe chegasse às mãos. Era o que lhe dava o prazer e a alegria necessários para tocar sua vida e seguir em frente.

E o mais importante: finalmente, poderia custear a cirurgia de varizes necessária ao restabelecimento da saúde de sua mãe, que de tantas dores e desconforto, já não trabalhava e pouco se locomovia. Até aquele momento, do SUS, só haviam promessas e uma fila “desumana” a enfrentar.

Instalara-se na casa da “madrinha de uma prima” (não tinha ninguém mais próximo na capital). Buscava ficar invisível a maior parte do tempo, para causar o mínimo de desconforto. Mas essa tarefa era por demais difícil, numa casa de apenas um quarto, onde a tal senhora, viúva, morava com um casal de filhos e um netinho de cinco anos, fruto da “pouca vergonha” de sua filha (repetia sempre que podia).

Nenhum deles trabalhava. Viviam da pensão do finado marido, que havia morrido em razão da queda de um andaime, na construção de um edifício grã-fino, luxuoso e exuberante, para os seus futuros moradores, mas mesquinho e algoz com os que lhe deram forma e estrutura.

Comentavam que o finado, em vida, não permitia a situação da família ser ruim. Só que ele sempre trabalhou “de bico”. E os meses decorridos entre a briga judicial para a comprovação da situação de que o finado era empregado da construtora – arrastados ao máximo por atuação do advogado da empresa – e a concreta percepção do benefício, foi tempo mais que suficiente para que fossem obrigados a vender os poucos bens e objetos que possuíam em sua casa. Consumido esse humilde tesouro, passaram à segunda fase da degradação social do ser humano: a perda do crédito nas mercearias do bairro. Por fim, o golpe de misericórdia: o penhor da honra aos agiotas.

Vez por outra, esses abutres de plantão adentravam, sem respeito, em sua residência, ameaçando-os, na vã esperança de ver, de volta, a cor do dinheiro que empenharam, isso como uma última medida antes de partirem para o cumprimento das promessas de ameaças física. Tal dívida dilapidara a vida e o caráter da família, comentava a vizinhança. Não bastasse o constrangimento de tais “visitas” e a ironia da fala desses magarefes, um ou outro sempre lhe lançavam olhares fulminantes e desrespeitosos. Tinha sua formosura e encantos, naturais. Estar na flor da idade também ajudava muito.

Nesse cenário, não podia contribuir com nada. Procurava não ser um peso. Silenciava para não ser percebida. Sentia que após três meses dessa convivência forçosa, começava a ser indesejada. “De favor não podia mais ficar por muito tempo. Precisava do emprego para custear ao menos o que consumia”.

Com esta, já era a sétima seleção a que se submetia nos três meses que se encontrava na cidade grande (grande pelo menos aos seus olhos).

A primeira, não passou da sala de espera da diretoria da escolinha de ensino fundamental. Foi avisada, sem cerimônias, pela secretária, que a filha de uma amiga da diretora, por telefone, atropelou-lhe o sonho do primeiro emprego já na área para qual havia se qualificado.

Não se deu por vencida: distribuiu currículos, custeados com o pouco dinheiro que trouxera, preencheu fichas para seleção, foi ao SINE – Sistema Nacional de Empregos, mas não conseguiu participar de nenhuma seleção em sua área. Não conhecia ninguém que lhe indicasse ou servisse de referência, o que dificultava as coisas. “A vida está difícil, mesmo” – pensou – “aceito uma boa proposta de emprego, mesmo fora da minha área, emergencialmente, e em seguida busco com calma o emprego que sonhei pra mim”.

Fez amizade com o dono da banca de revistas do bairro, e passou a ler os classificados todas às manhãs. Isso com muito cuidado, para não amarrotar o exemplar. Copiava tudo o que lhe parecesse possível, sem muito critério. Sua necessidade atropelara sua auto estima e suas exigências mínimas.

Sua segunda tentativa foi numa loja de cosméticos, no centro da cidade.
“Carteira assinada!? Olha, veja bem, você começa a trabalhar e, dependendo do seu ‘traquejo’, a gente vê isso depois”. Disse um sonoro não! Havia lido tudo direitinho, na cartilha distribuída no SINE. “Tem que ter carteira assinada! Eu sei! Senão, não tem as garantias para se eu vier adoecer ou, Deus me livre, vier a morrer. E a aposentadoria? Assim não vão ser contados ‘os tempos’! Não, obrigada”. Saiu da loja de cabeça erguida e honra intocada. Percebeu ar de riso por parte das pessoas que presenciaram a cena, mas não se permitiu aviltar.

“Procura-se mulher de pele clara, boa aparência, até vinte e cinco anos, para trabalhar em barzinho; não precisa ter referências”.

“Para ser sincero, melhor que não as tenha” – falou o dono do Bar da Estrela, homem de meia idade, palito de dente no canto da boca, corrente grossa de ouro no pescoço e pele tão oleosa que lustrava sob a luz da lâmpada amarelada da salinha abafada que ficava aos fundos do estabelecimento. “Sabe como é... a clientela gosta de novidade. Aqui eu não permito programa! Se você quiser fazer por conta própria, você é quem sabe. Mas o cliente tem que adiantar 50% do que vai lhe pagar para poder lhe tirar da casa. É para sua própria segurança, sabe? Aqui você faz os pedidos, serve as mesas, ao final do dia lava e limpa o salão, ajuda na cozinha e, se o cliente quiser, pode dançar em cima da mesa, sim, sem problemas!. Aí, o resto, você em quem resolve se faz ou não. Aqui eu não forço nada! Agora você não pode vir vestida assim não! Tá muito comprida essa saia! Mas as outras meninas lhe ajudam a melhorar essa aparência. Você até que é jeitosa... Ah! Tem que providenciar um documento ‘de maior’ para você, para não dar problema com a Polícia.”

Num misto de nervoso e boa educação, agradeceu e saiu correndo. Uma lágrima pendia de um olho. Apenas uma, embora o fato justificasse uma cascata. O sertanejo chora com o coração, com o peito. Não lhe é dado o luxo desse fenômeno natural. “O que foi líquido, economiza-se”.

“Isso nunca – falou em voz alta, para si mesma – hei de me guardar, não para depois do casamento, pois não sou casta, mas para quem eu vier a amar. Nunca deitarei por dinheiro”.

Depois veio a seleção para a vaga de secretária num escritório médico. Exigiram computação. Bem que tentou fazer o curso, ainda no interior, oferecido por uma entidade sem fins lucrativos. Mas o rebuliço foi grande na cidade; haviam muitos interessados; ficou de fora.

Na seleção para cobrador de ônibus da empresa de transporte urbano, exigiram experiência anterior.

Na de vigilância suas esperanças se reacenderam. Passou por dinâmica, psicotécnico e entrevista. No dia do resultado, a notícia desagradável: reprovada!

“Mas eu só queria saber o que foi que eu fiz de errado! O que foi que eu disse!?”

“Não vem ao caso. A seleção é sigilosa e não podemos divulgar o por quê”.

“Mas eu só queria...”

Diante de seus olhos, jazia embaixo dos cotovelos da entrevistadora, como se fossem uma improvisada “tranca de segurança”, a pasta transparente, onde reconhecia seu teste; limpo, organizado, de letra legível, como lhe ensinara Dona Teresinha, a professora do primário, lição que sorveu de um fôlego só e carregou pelo resto da vida.

“Mas, hoje seria diferente”, desejava com ardor.

Chegou. Apresentou-se. A vaga era para auxiliar de serviços gerais em uma fábrica de refrigerantes. A entrevistadora não chegou a ser desagradável, mas a sua frieza a assustou. Não lembrava ter conhecido ninguém assim em sua vida. “Vai ver é a frieza que contamina as pessoas da cidade grande”, pensou.

Ela foi logo lhe dizendo: “aqui você não vai ser empregada. Aqui você é sócia; é dona do negócio. Somos uma cooperativa de médicos, engenheiros, motoristas, encanadores, mecânicos, modelos e auxiliares de serviços gerais. E tudo funciona direitinho. Agora, só tem vaga para serviços gerais. Primeiro, você tem que preencher essa ficha com os seus dados, e essa outra concordando com o estatuto da cooperativa. Ah, também tem esse papel para você assinar. Está em branco, mas é que eu não tive tempo de preencher, e para facilitar, você assina logo e eu preencho depois. Em seguida, você tem de pagar R$ 150,00, ‘no ato’, se aceitar a proposta, para custear sua adesão. Sabe como é... a papelada de adesão custa caro!” Tudo aquilo lhe causava estranheza. Nunca tinha ouvido de que se tivesse de “pagar” para poder trabalhar.

Continuou: “agora, quando você passar a trabalhar, só receberá dois terços do salário, pois o outro terço é convertido em favor da cooperativa, para manter a estrutura dessa sala, aqui na empresa de refrigerantes. Afinal, sem essa sala, não temos como intermediar o fornecimento de mão-de-obra. Ela é essencial. Você não vai ter carteira assinada; mas é porque não é empregada, eu já expliquei, você é autônoma, dona do seu negócio, juntamente com os outros sócios. É tudo muito vantajoso! Agora, você tem que pagar, ainda, por fora, o seu fardamento, botas, luvas, e ajudar no custeio do material de limpeza. Sabe como é...se a gente não cobra nada, é aquele estrago de sabão, desinfetante... mas não se preocupe. Esse desconto é só a partir do primeiro salário”.

Tão grande seu espanto, que teve receio de seu semblante expressar as desconfianças que lhe vinham à mente. Controlou-se para não franzir as sobrancelhas. Não podia perder essa chance.

“Espere, eu ainda não acabei de mencionar as vantagens! No horário de trabalho, você poderá tomar todo o refrigerante que você quiser; tanto quanto puder. Só é trazer o copo. Agora, água não tem não. Se não quiser refrigerantes, vai ter que se servir da água da torneira do único banheiro disponível para os empregados da fábrica. Água custa caro!”

Tentou explicar que especialmente para ela, não era vantagem alguma, que não podia tomar refrigerantes, pois lhe ocorriam dores abdominais fortíssima, seqüelas de uma esquistossomose que lhe acompanhou por toda a infância e lhe deixou o “intestino” delicado.

“Só trabalhamos para essa empresa. É aqui mesmo que você irá trabalhar. Também não permitimos alterações no contrato de adesão. Você só está ‘dentro’ se aceitar tudinho que está no documento. Você tem os R$ 150,00?” Não tinha.

“Gostei de você. Vou te ajudar. Espero até o fim do mês a sua adesão. Deixo sua vaga reservada”.

Saiu do escritório da tal cooperativa, encravado na estrutura da fábrica de refrigerantes, com a cabeça a mil. Como conseguir o tal dinheiro? Tinha quase vinte dias, o que era um bom prazo, mas não sabia o que fazer para levantar tal quantia.

Já eram 11h da noite e sequer tinha comido nada até àquela hora. Estava imóvel, no sofá de dois lugares, que lhe servia de cama, da minúscula sala da casa da viúva. Abraçou-se a uma almofada descosturada, em cuja fenda circulava o dedo indicador, com a insistência de um mantra. Não conhecia ninguém na cidade, afora a família falida que lhe acolhera meio a contra gosto.

Naquele dia conseguiu, finalmente, ser invisível.

Que fazer? Não poderia contar com seus pais. Assim ficou o resto do dia. Quieta, em frente à velha televisão, mas sem perceber as imagens, absorta em seu mantra.

Para não dormir em jejum, um café aguado (economia de pó) com pão dormido. Tamanha a confusão de idéias, que sequer lembrou de comer. E nem foi indagada por ninguém, se desejava se alimentar.

No dia seguinte, levantou-se, resoluta, antes do nascer do sol. Não se acordou, pois sequer dormiu, tamanha a euforia com a enxurrada de idéias que lhe vinham à mente. Debatia-se com umas, abraçava outras... confusão mental.

“Seria só uma vez” – pensou. Lavou o rosto, cortou e costurou a barra de sua melhor saia, calçou suas sandálias de festa, olhou-se nos olhos, no pequeno espelho do banheiro, passou o batom vermelho que encontrou por ali e saiu resoluta em direção ao Bar da Estrela...
* Conto publicado na Coletânea, resultado de concurso, "Trabalho e condição humana - Poesia e Conto", do TRT 19ª Região/AL, em março/2006.

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